Em entrevista para o Grupo Carta de Belém, Fernando Campos abordou a relação das enchentes no Rio Grande do Sul e seus consequentes impactos na vida cotidiana da população com os processos de privatização, captura corporativa do Estado, desmontes na legislação ambiental e avanço das lógicas de mercado nos territórios de vida. Evidenciando o que nos trouxe até a recente calamidade em solo gaúcho, expôs a fragilidade a qual boa parte da população ainda está submetida, meses após as enchentes. Propôs, ainda, quais caminhos e soluções apontam para que o futuro não seja inundado por um passado que traz a marca de uma tragédia há muito anunciada.
Fernando faz parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Amigas da Terra Brasil (ATBr), uma organização internacionalista de base que luta por justiça socioambiental e constrói a soberania alimentar, territorial e dos povos, que integra o Grupo Carta de Belém (GCB).
Confira a entrevista na íntegra:
Grupo Carta de Belém (GCB): Qual é a situação?
Fernando Campos: A situação é de calamidade em função da enchente, que atingiu grande parte do Rio Grande do Sul de diversas formas, e que trouxe de cara a situação dos ambientes degradados no caminho dessas águas. Mas há toda uma flexibilização ambiental que permitiu o desmatamento, há o não respeito às Áreas de Proteção Permanente (APPs) e toda legislação ambiental. O grande responsável é o agronegócio, de forma direta, com a produção de soja e eucalipto, e até mesmo de outras culturas que são desenvolvidas em locais que deveriam ser preservados. Com isso ocorre a grande invasão de água dentro dos rios, assoreados, com barragens que não garantem a pressão da água, que foram destruídas no caminho, que foram enchendo e gerando ondas de alagamento, numa velocidade maior que a das chuvas, fazendo com que as pessoas fossem pegas desprevenidas, pois nível da água subiu muito rápido.
O contexto geral é a resposta da degradação ambiental que de forma sólida existe nos territórios. Há muitos lugares onde essa realidade é gritante. Se olhar fotos aparecem todos esses caminhos das águas, e é possível ver que não foram respeitadas as legislações ambientais. Os grandes projetos de morte acabaram gerando mortes, seja os da mineração, do agronegócio ou da especulação imobiliária, jogando moradias em locais de risco. As águas vindo pelos rios Caí e Jacuí, todos esses rios que chegam em Porto Alegre (RS), encontraram um sistema de preservação, de contenção das cheias sem manutenção, com portas que não fechavam, sistemas de esgotos que deveriam ser lacrados para evitar o refluxo mas não estavam, várias condições que não estavam com manutenção. Isso vem de governos de direita negacionistas, que nesse processo não estabeleceram essas manutenções, numa logica de estado mínimo, de privatização de serviços, de desestruturação de políticas e ações que garantiriam esse tipo de manutenção. O Departamento de Esgoto (DEP) foi desmanchado e assimilado a outras estruturas que teriam o mesmo foco. Seja no campo, na zona rural ou na zona urbana, o negacionismo toma conta, não há manutenção nos sistemas de proteção. E essa situação continua quando essa água sai do Guaíba e vai para a Lagoa dos Patos, então começa o alagamento em outras regiões. O Litoral Sul, que pega todas as cidades que estão em torno da Lagoa, que não tinham proteção, aí se gerou essa situação inevitável com a subida das águas.
Então, a princípio, o maior motivador é o negacionismo, a falta de ciência, de técnica em relação a essas situações e ao mesmo tempo essa situação toda em que alguns são atingidos diretamente e uns mais que os outros. Pessoas da periferia, de locais onde não há nenhum tipo de investimento do Estado, acabaram sofrendo consequências bem maiores. E aí a gente tem pessoas que perderam tudo, cidades inteiras devastadas, a agricultura familiar totalmente destruída nos territórios, áreas de produção agroecológicas destruídas também. Então o impacto vem dessa visão negacionista e sua origem nos setores corporativos que trabalham lobbys para flexibilização da legislação e lucro dessas empresas (seja da mineração, do agro…), de forma a ampliar seus lucros explorando ao máximo a natureza e bens comuns.
Grupo Carta de Belém (GCB): Quais são os desafios?
Fernando Campos: Devemos indicar os responsáveis, para que isso não fique impune. São eles: as grandes corporações, o poder corporativo, os Estados capturados de forma direta com políticas que fazem uso de empresas e setores para avançar no processo eleitoral, e com isso eles fazem lobby para ganhar mais recurso, e financiamento para essas empresas, seja na flexibilização das legislações ambientais, por exemplo, onde o Estado favorece esses setores. Precisamos indicar os responsáveis, seja no setor do agronegócio, da construção civil, da mineração. Outro desafio foi estabelecer uma ação rápida. Há quase 40 dias da enchente ainda tem pessoas desabrigadas, pessoas que ainda não tem uma solução de moradia, vivendo em abrigos precários, sem mínima estrutura, muitos deles sem alimentação para as pessoas, e muitas vezes eles tem que escolher alimentar só a família, ou só as crianças. Situação caótica, e as pessoas continuam em risco, em insegurança alimentar. E para além disso tem toda a questão da saúde, da educação, que estão prejudicadas, as famílias sem poder voltar a trabalhar, sem poder voltar a ter sua renda, entregues a um Estado que deveria garantir direitos e este Estado está em colapso total, pois é um estado mínimo que não tem capacidade de incorporar essas situações. E aí a gente vê uma lógica voluntarista, onde parece que só a ação da sociedade vai resolver os problemas. Então a gente precisa, nesse momento, mostrar que essa lógica do estado mínimo gera violações diretas, crise ambiental, e para isso a gente precisa de um estado forte, que garanta direitos, que faça esse diálogo com a sociedade. Isso também é uma outra questão que a gente vê a cada momento, esse estado negacionista de extrema direita, em que não aceitam a participação direta e não aceitam os Conselhos, que são enfraquecidos, que não agregam na construção das soluções. São de faz de conta, não constroem uma participação da sociedade. Prefeituras e governo do estado priorizando reuniões com empresas e empresários, como se eles fossem a solução, e na verdade foram eles que nos trouxeram até aqui, a essa situação caótica, de crise. Então, de alguma forma a gente acredita que o desafio neste momento é indicar os responsáveis e buscar as possibilidades de construção e participação priorizando os movimentos sociais que estão nos territórios, que estão atuando, têm expertise. Exemplos como a produção agroecológica, em que o pessoal se organiza e garante alimentação, o processo do Minha Casa Minha Vida Entidades, que produzem moradia, e as melhores moradias a disposição, onde o lucro das empresas é transformado em qualidade e dignidade de moradia, seja no tamanho da casa, número de quartos, com horta, equipamentos para horta, construção e sentir de comunidade, e não um teto como moradia de forma precária.
Grupo Carta de Belém (GCB): Quais são as soluções?
Fernando Campos: A gente acredita muito que o papel do Estado é fundamental, um estado forte na lógica de reconstrução de um estado que possa garantir os direitos, que esteja preparado para este tipo de situação. A gente vê um total despreparo para estabelecer condições, tudo tem levado muito tempo e esse tempo não garante a vida das pessoas, seja no pré, durante ou no pós, a dificuldade é muito grande de garantir a vida das pessoas.
Ao mesmo tempo vejo que as soluções estão nos movimentos sociais. É preciso encarar os movimentos sociais como forma de atuação junto com o estado. A agilidade dos movimentos sociais é muito maior que a do Estado. Quando começaram todas as situações, os primeiros a atuarem foram os movimentos sociais, foram as Cozinhas Solidárias de Emergência que foram instauradas, que garantiram de forma rápida a redução de danos em relação ao impacto sofrido. As comunidades que estavam organizadas reduziram seus prejuízos, vulnerabilidades, a partir do apoio. Então tem o papel do movimento social de organizar, seja na construção da soberania alimentar… É importante entender os processos como eles se dão, porque essa relação entre solidariedade, entre Cozinha Solidária, agricultura familiar, isso vai garantir a soberania. Não só a segurança alimentar, mas também a soberania, a garantia de laços entre o urbano e o rural. É importante que isso seja garantido. E que políticas públicas como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) possam garantir essa relação a partir da política pública e novamente, com os movimentos sociais sendo a porta de entrada disso.
Precisamos de agilidade na solução das moradias. Têm pessoas que perderam tudo, a casa, a vida, é muito importante que as famílias mais atingidas consigam reorganizar suas vidas. As situações de precariedade dos abrigos, de violações de direitos são constantes nesses espaços. Há falta de autonomia, de privacidade, onde isso é fundamental. Muitos imóveis vazios que poderiam estar garantindo essa moradia, sejam imóveis do governo do estado, dos municípios, da União, ou imóveis privados, que estejam a disposição do aluguel social, da compra assistida, mas que consiga garantir a função social da propriedade, e não só em situação de crise. As famílias precisam de moradias, os espaços das escolas precisam ser desocupados, as aulas precisam voltar. Então moradia e manutenção da alimentação, as famílias conseguirem ter acesso a comida, as cozinhas solidárias de emergência, são fundamentais para garantir o mínimo e ao mesmo tempo os agricultores que foram atingidos consigam retornar à situação de produção o mais rápido possível, numa ação conjunta do urbano e do rural.
Ainda no tema das soluções é muito importante que a gente coloque a questão do problema fundiário, primordial nesta discussão. A questão fundiária é a principal violadora de direitos, principal tema. Precisa de uma solução. Nesse momento devemos colocar isso como uma meta de garantir a reforma agrária, de garantir a titulação dos quilombos, garantir a demarcação das terras indígenas. Os problemas gerados a partir da precarização da vida das pessoas, falta de capacidade de resposta em situações de crise, vem por parte das injustiças ambientais nos territórios, políticas públicas não atendem, não existe uma democracia direta. A principal solução para a questão do clima é a questão fundiária, são os povos nos territórios. Locais preservados são locais onde as comunidades vivem, são locais com ambiente preservado de forma segura. É preciso garantir o território, a comunidade dentro do território para preservação dos impactos à natureza, ao ambiente, que garanta o bem viver nestes territórios.
Grupo Carta de Belém (GCB): Como a questão da agroecologia e soberania alimentar estão inseridas nesse contexto?
Fernando Campos: A questão da alimentação especificamente: tivemos a Conferência Nacional de Segurança e Soberania Alimentar, em que se falou em comida de verdade. Já vínhamos implementando esses processos da Cozinha Solidária de Emergência do MTST, regulamentando junto ao Ministério de Desenvolvimento Social, junto a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) a compra de alimentos não só da cesta básica, mas também da agricultura familiar, para garantir a comida de verdade. Quando se fala em saúde, imunidade, esses alimentos são fundamentais, garantem a saúde e a alimentação. Vem de produção sem agrotóxicos, que gera uma lógica garantida e apoiada a partir das políticas públicas, e não a lógica do agronegócio que garante commodities e não alimento para as pessoas, além de contaminar diretamente as águas, solo, ar, pessoas e animais. É isso… Como pensar o problema da fome, sem apoiar o agronegócio que gera outros impactos, inclusive do que estamos vivendo hoje? Agronegócio não pode ser a solução, devemos fortalecer a agricultura familiar, que preserva vidas e garante vida.