Após encontro no Mato Grosso, organizações repudiam tentativa da CNA de revogar Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

Entre os dias 16 e 17 de agosto, o Grupo Carta de Belém esteve em Cuiabá, no Mato Grosso, para debater questões relativas à financeirização da natureza e suas infinitas siglas – REDD, REM, CAR, CRA e assim por diante – e como elas impactam o cotidiano das comunidades tradicionais, povos indígenas e pequenas e pequenos produtores rurais. Sobre o encontro, você pode ler aqui.

Um acontecimento prévio, porém, deixou a todas e todos ali reunidos perplexos: no dia 14, a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) e a Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) do Congresso Nacional encaminharam à Presidência da República um pedido de revogação do Decreto 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Tal atitude levou os membros do Carta de Belém a responderem a este ataque aos direitos do povo: “Percebemos que as disputas pelos usos da terra se acirram cada vez mais por meio de elites rurais que dominam a política nacional, promovendo o retrocesso de direitos sociais, culturais, econômicos e territoriais”, escreveram em nota de repúdio.

Leia, abaixo, a íntegra do texto:

Nota de Repúdio ao Pedido da Confederação Nacional de Agricultura de Revogação do Decreto 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

Nós, Movimentos Sociais Camponeses, Indígenas, Quilombolas e de Povos e Comunidades Tradicionais, além de organizações da sociedade civil, reunidas no seminário “Código Florestal e REDD+: interpretações e disputas para a defesa dos bens comuns”, ocorrido entre os dias 16 e 17 de agosto de 2018, em Cuiabá, Mato Grosso, recebemos com perplexidade a notícia de que a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) e Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) do Congresso Nacional, encaminharam à Presidência da República, em 14 de Agosto de 2018, pedido de revogação do Decreto 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Consideramos lamentável esta notícia justamente em momento que o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) discute sua institucionalização e as formas de visibilização dos modos de viver e estar na terra.

Percebemos que as disputas pelos usos da terra se acirram cada vez mais por meio de elites rurais que dominam a política nacional, promovendo o retrocesso de direitos sociais, culturais, econômicos e territoriais.

nota reudio cna

Em outras palavras, as elites representadas na CNA e na FPA ignoram não só a relevância e o conteúdo de direitos humanos e territoriais coletivos já previstos constitucionalmente pelos Artigos 215, 216, 225, 231, 232 da Constituição Federal, e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCTs), regulamentados e aplicados pelo Decreto 6040, mas essencialmente vão de encontro a garantia, promoção e proteção dos bens comuns do povo, tal qual especificado no Artigo 225 da Constituição Federal.

Neste sentido, a “garantia da segurança jurídica no campo”, como destacada no oficio em justificativa ao pedido de revogação, contrasta e colide com a garantia da segurança alimentar, de vida, e da terra para muitas pessoas e grupos que garantem bens comuns e diversos para todos e todas, tradicionais ou não tradicionais. Como apontou a liderança raizeira Lourdes Laureano nas discussões que seguiram ao anuncio do pedido de revogação, “nos sabemos fazer muitas coisas. Sabemos fazer remédios, sabemos curar, sabemos trazer alivio e bem estar para nós mesmas, e para muitas outras pessoas. Nós conhecemos a terra e a vida.”

A iniciativa da CNA deve ser compreendida no contexto de agudização das violências, de combate aos Direitos Humanos, da ampliação dos conflitos agrários, ameaças e mortes de defensoras e defensores da natureza e da vida, que só tem aumentado nos últimos anos. Entendemos que atitudes como essas, protagonizadas pela CNA e pela FPA, aprofundam e têm como objetivo manter o país em esquemas coloniais por meio de medidas racistas institucionais que revelam uma estrutura antiga que voltou a tona com força, sem limites ou cortes, desde o golpe de 2016.

Movimento já anunciado desde as negociações do Código Florestal, e que se aprofundou e regionalizou em varias frentes pelo país ao longo dos últimos anos, seja na Amazônia, nos Cerrados, na Mata Atlântica ou nos Pampas, o que vemos é um profundo desrespeito ao princípio de autodeterminação, questionado duramente no oficio da CNA e da FPA, tão ligado às formas autônomas e livres de usar, ocupar, viver e extrair do e no território, em harmonia com os modos de vida.

Reafirmamos que não podemos nos enganar com o discurso do interesse nacional amplo e irrestrito. Este interesse é de muito poucos sobre as terras e os direitos de um coletivo muito mais amplo. Não por acaso se reflete no pedido de revogação quando os companheiros geraizeiros e vazanteiros conseguiam avanços importantes no reconhecimento dos seus direitos coletivos a terra no norte do estado de Minas Gerais. Importante dizer terras publicas, e não devolutas ou desocupadas como tentam argumentar.

Os argumentos levantados no ofício são falaciosos e não passam de medidas para possibilitar a sanha de parte do agronegócio nacional interessada em expandir ilimitadamente domínio sobre terras que são territórios ocupados por Povos Indígenas, Quilombolas e outros Povos e Comunidades Tradicionais.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou diversas vezes pela desnecessidade de lei em sentido formal para aplicação de direito fundamental constante da constituição ou Tratado de direitos humanos incorporado no ordenamento (seja de status constitucional ou supralegal), que tem eficácia plena e aplicação imediata (art. 5 parágrafos 1, 2 e 3 da CF). Este foi o caso do julgamento da constitucionalidade da Resolução n. 7 sobre nepotismo do CNJ que apenas aproximou da administração o dever de moralidade e impessoalidade do art. 37 da CF, que prescinde de lei em sentido formal para ser aplicado. O mesmo entendimento se deu no julgamento da ADI sobre o Decreto 4887/03 quilombola, também declarado constitucional por regulamentar diretamente o art. 68 do ADCT e a Convenção 169, sem a necessidade de edição de lei.

Os critérios e políticas atacados no famigerado parecer decorrem da atividade legislativa do Poder Executivo em consonância com o que determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), norma internacional de Direitos Humanos internalizada no Brasil pelo Decreto-Legislativo nº. 143/2002, aprovado pelo Congresso Nacional, e promulgada pelo Decreto 5051/2004.

No caso do Decreto 6040/2007, o mesmo institui políticas públicas relacionadas a Povos e Comunidades Tradicionais para efetivar Direitos Humanos internalizados pelo Estado Brasileiro por meio de mecanismo legislativo próprio, não podendo ser revogado como mero ato administrativo. Desta forma, a revogação do decreto estaria impedida por se tratar de direito adquirido e de instrumento vinculado a tratados internacionais, o que também estaria vedado pelo princípio constitucional do não-retrocesso em Direitos Humanos.

Além disso, o Decreto 6040, não é o único instrumento legislativo que adota referidos critérios para a auto-atribuição, ou autodeterminação, e conceituação de territórios tradicionais. A Lei 13.123/2015, que versa sobre a proteção e o acesso a biodiversidade, adota os mesmos critérios para a definição do escopo de sua aplicabilidade, vide artigo 2º, IV.

Na verdade, o que percebemos então é que o ataque se dirige à Convenção 169 e ao princípio da integralidade territorial, autodeterminação dos povos, e das definições correlatas e associadas sobre o uso, ocupação e vivencia na terra gerando direitos sobre este todo espacial, espiritual e cultural que é o território, determinado pelos povos com base nas experiências de vida e nos costumes.

Forte nessas razões é que DENUNCIAMOS e REPUDIAMOS a iniciativa da FPA e da CNA, exigindo a imediata retratação por parte dos entusiastas dessas medidas, pois escancaram a escalada do autoritarismo e da ruptura com a tradição pluralista e democrática, fundamento da sociedade brasileira tal qual expresso na Constituição Federal de 1988.

Cuiabá, 17 de agosto de 2018.

Assinam:

Alternativa para Pequena Agricultura no Tocantins – APATO
Amigos da Terra Brasil
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Articulação Pacari de Raizeiras do Cerrado
Associação de Programas em Tecnologia Alternativas – APTA
Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia – AOPA
Associação Regional das produtoras extrativistas do Pantanal – ARPEP
Associação Regional de Produtores/as Agroecológicos – ARPA
Central Única dos Trabalhadores – CUT
Centro Burnier Fé e Justiça
Centro de Agricultura do Norte de Minas – CAANM
Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès – CDHDMB
Centro Indigenista Missionário – CIMI/MT
Comissão Pastoral da Terra/MT – CPT-MT
Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins – COEQTO
Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ
FASE
Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso – FEPOIMT
Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
Fundação Luterana de Diaconia – FLD
GAIA
Instituto Caracol – Icaracol
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MT – MST-MT
Operação Amazônia Nativa – OPAN
Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras
Rede Ecovida
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém – STTR de Santarém/PA
Sociedade Fé e Vida
Terra de Direitos