Bioeconomia: nova cara da financeirização da natureza

A saída do capital para as mudanças climáticas é jogar os problemas para os países do sul, sem alterar o padrão de produção e consumo dos países do norte

Antes mesmo do 10º Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) iniciar, em Belém (PA), o Grupo Carta de Belém (GCB) promoveu um dia intenso de debates sobre os impactos para os povos e os territórios dos projetos de bioeconomia na Amazônia, e nos demais biomas do Brasil. O encontro reuniu organizações que integram a articulação do grupo, somando as vozes de representantes de distintos territórios dos biomas amazônia, pantanal, cerrado, territórios quilombolas, comunidades tradicionais, do campo, das florestas, das águas e das cidades.

Na parte da manhã representantes do grupo que estiveram acompanhando as negociações da COP26 e os preparativos da COP27, que ocorreu em Bonn, na Alemanha, trouxeram contribuições do debate internacional, em um esforço de popularizar como estes acordos impactam localmente, através dos interesses das empresas e da cooptação dos Estados pelas transnacionais. Na abertura da reunião, Tatiana Oliveira, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, ressaltou o necessário combate contra a “assetização” da natureza, que é a transformação do meio ambiente em ativo financeiro.

“Uma mercadoria gera lucro através da exploração da mais-valia, da introdução de novas tecnologias para reduzir custo de produção. O ativo financeiro responde a uma lógica diferente disso: pressupõe a possibilidade de se extrair receitas de forma contínua, através da valoração econômica de um bem, material ou imaterial, quer gerar um fluxo de caixa constante”, explica. “É disso que falamos agora nessa nova etapa do capitalismo em que a bioeconomia se torna nessa ferramenta de transformação da natureza em um ativo financeiro. Estamos falando de processos de exploração do valor, tanto de mercadorias concretas, físicas, mas também de processos de valoração de exploração e financeirização de coisas que não vemos, como o conhecimento de povos e comunidades tradicionais e a paisagem”, exemplifica Tatiana.

Para Leticia Tura, diretora-executiva da FASE, a bioeconomia é uma nova roupagem para velhas práticas, já que, frente às emergências climáticas, ao invés de se pensar em transformações e mudanças, são construídas propostas baseadas em compensação e remoção de carbono. “Qual é o problema disso? Em primeiro lugar, não se pode reduzir toda a questão ambiental, toda questão ecológica apenas a carbono. Os ecossistemas são muito diversos, temos que falar sobre solo, biodiversidade. Em segundo lugar, a maioria das iniciativas de bioeconomia violam direitos socioterritoriais. Boas iniciativas serão uma ilha de sucesso num mar de zonas de sacrifício. Por último, a gente percebe o enfraquecimento do Estado e das políticas públicas”, pontua. “Quando a gente vê essa redução do Estado, vemos também uma redução de garantias de direitos, o descumprimento da Constituição. Então, na verdade, não está sendo construído nada novo, mas sim botando uma velha roupagem nas práticas de muitos séculos no Brasil”.

Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado, fala que a bioeconomia é uma expropriação muito violenta dos recursos e dos conhecimentos tradicionais. “Os nossos conhecimentos estão intrinsecamente ligados à biodiversidade, quando se expropria a biodiversidade, se expropria os conhecimento a eles associados”, reforça. Ela destaca que a bioeconomia é: “levar nossos recursos para depois a gente ter que comprar mais caro, acaba com a nossa autonomia de cuidar da nossa saúde com as nossas plantas medicinais”, reforça sobre o poder das grandes corporações em relação ao registro de patentes.

Apropriação dos bens comuns: financeirização e destruição das políticas públicas

Tatiana Oliveira, assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e integrante do GCB, aponta que o capitalismo vem se arrastando numa crise há bastante tempo e, com isso, a Covid virou desculpa pra rediscutir parâmetros da recuperação econômica sob uma narrativa que se apresenta como verde, por isso a importância de falarmos sobre bioeconomia. O tema foi debatido em eventos, como a Estocolmo +50, a reunião preparatória para a COP27 em Bonn e o Fórum de Florestas na Noruega, em que Estados, empresas, representantes de fundos de investimentos e Ongs internacionais discutiram o papel do Estado como produtor de projetos. Ou seja, não mais o entendimento do Estado como governança de políticas públicas, mas responsável por criar oportunidades de negócios realizados pela iniciativa privada, seja empresas ou o sistema financeiro. “A própria organização do Estado vem se transformando no sentido de organizar Parcerias Público-Privadas com a promessa de redução dos custos de implementação dos projetos, mas que na verdade tem um custo grande para o Estado”. 

A assessora política reforça a importância de momentos como o encontro do GCB para discussões que fundamentam o modelo de sociedade que estamos construindo. Uma vez que o que ocorre dentro desse formato, que o mercado financeiro vem impondo aos Estados, uma transferência massiva de recursos públicos para a iniciativa privada. O exemplo de como isso está acontecendo na gestão dos bens comuns da natureza é o Plano de Recuperação Verde da Amazônia Legal, assinado pelos governadores dos estados da Amazônia brasileira. O documento traz certificações, integração das cadeias extrativistas com a das commodities do agronegócio, mercado de carbono, como saída para a crise econômica que estamos vivendo, aprofundado pela Covid-19. “A gente está falando de um processo brutal de apropriação dos bens comuns, da natureza, no tipo de negócios que a bioeconomia propõe, mas a gente também está falando da transferência de recursos do Estado para a iniciativa privada e o mercado financeiro”.

“A maniçoba que a gente come aqui hoje é cozida durante sete dias. Quanta pesquisa, quanta tecnologia foi desenvolvida para nós chegarmos nesse patamar hoje?”, questiona Edel Moraes. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

“Não haverá amanhã se não cuidarmos do hoje. Sem povos e comunidades tradicionais não existe vida”, nos lembra Edel Moraes, do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). São os povos e comunidades tradicionais que secularmente plantam as florestas e zelam pela sua manutenção, em um entendimento profundo dos direitos da própria natureza à vida e como possibilidade de gerar vida. Edel contribuiu com o debate rememorando que ocorreu, em 2021, também em Belém (PA), o Fórum Mundial de Bioeconomia. O encontro de representantes de empresas, como Suzano, Bayer e Brasken, e de representantes do governo como do vice presidente do Brasil, Hamilton Mourão, e de organizações como FAO e Unesco, utilizou na escolha estética do evento o grafismo dos povos indígenas, no entanto não houve uma construção de diálogo junto a esses povos, principais impactados pelos projetos que os grandes empreendimentos propõem para a região.

“Biodiversidade para nós gera vida, não somente lucro”, Edel ressalta que é possível gerar economia para os povos das florestas desde que feita: “por nós, conosco e do nosso jeito”. Ela explica ainda que o debate “tecnológico” não traz novidades para os povos tradicionais, ao contrário, é preciso reconhecer os conhecimentos ancestrais e as soluções desenvolvidas geração após geração. “O açaí a minha avó já amassava secularmente. O cacau a gente já faz. Isso tudo são tecnologias pra nós. A maniçoba que a gente come aqui hoje é cozida durante sete dias. Quanta pesquisa, quanta tecnologia foi desenvolvida para nós chegarmos nesse patamar hoje?”, questiona. 

Para a pesquisadora Camila Moreno a bioeconomia proposta pelas lógicas empresariais pode ser entendida de duas formas: uma narrativa que dá coerência e propósito para esse mandato político da descarbonização da economia; também como estratégia de transição para economia de baixo carbono. Contudo, essa transformação do pensamento econômico, onde o clima rege e a bioeconomia entra, não é novo. “A bioeconomia está nesse cenário de futuro para transformação ao capitalismo verde, agora estamos nesse momento chave de convergir as estruturas regulatórias desse processo”. 

“Bioeconomia é biotecnologia”, afirma Camila Moreno. Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

Ela explica que essa bioeconomia proposta pelas corporações significa: “sair de uma economia que depende exclusivamente do petróleo, do carvão e do gás, com transição para uma economia da biomassa, baseada nas plantas”. Ela explica que a  ideia é casar essa produção de matéria a partir da produção da natureza com a biotecnologia, com trabalho de alterações genéticas como os já conhecidos transgênicos. “Bioeconomia é biotecnologia”, afirma Camila. Ela adiciona que estamos falando da disputa de empresas sobre os povos locais por patentes, propriedade intelectual, pagamento de royalties, em que o uso e comércio de plantas que são usadas para saúde nos saberes populares só poderia ocorrer com a permissão das empresas. O que gera controle sobre os territórios e ataca os modos de vida das populações locais. Nesse sentido, é importante reforçar a luta histórica pelas sementes crioulas e o livre acesso ao conhecimento.

Em resumo, as propostas de retomada verde vem no sentido de realizar uma reforma do capitalismo, uma sobrevida, abrindo um novas áreas de exploração e de lucro possível, sem romper com a lógica de consumo desenfreado. A mentalidade colonial segue a mesma: os países do sul seguem dando base para que os países do norte possam manter seu padrão de consumo.

“Somos de territórios diferentes, mas a nossa luta é a mesma”

O debate englobou a conexão entre os projetos financeiros da nova cara do capitalismo verde e como isso chega aos territórios, além de trocar experiências sobre as resistências dos povos e comunidades tradicionais, das águas e das florestas, populações rurais, das cidades.

Como já dissemos, o projeto de é de desmontes das políticas públicas, remontadas sob uma perspectiva privatizante, como é o caso dos projetos do mercado de carbono (nos seus diferentes nomes: Redd+, NetZero, Soluções Baseadas na Natureza), além dos programas Adote um Parque e do Programa de Desestatização do BNDES, transferindo dinheiro público para empresas privadas que atuam na especulação com créditos de carbono ou mesmo para o agronegócio. O que gera impactos diretos sobre a soberania popular em territórios da Amazônia. 

Há um problema muito concreto que tem a ver com a financeirização da natureza no âmbito da disputa global pelos recursos hídricos, pela água doce. “Talvez não seja algo tão evidente em uma região como o Pará, mas que se apresenta em regiões como a Índia, China, Oriente Médio, além da Europa que tem pouquíssimos recursos hídricos disponíveis, com grande parte das suas bacias contaminadas”, destaca a pesquisadora Monica Bruckmann, professora do depto. de Ciência Política da UFRJ.  A região da américa do sul tem as maiores reservas a nível planetário, sendo cerca de 30% das reservas de água doce, com capacidade de recomposição das águas subterrâneas, provenientes das águas da chuva. 

América do Sul possui cerca de 30% das reservas de água doce do mundo. Foto: Carol Ferraz/ Amigos da Terra Brasil

Ela lembra também que a Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente, realizada em Dublin, em 1992, produziu resultados problemáticos, como o princípio número 4, que estabelece valor econômico para o recurso: “A água tem valor econômico em todos os seus usos e deve ser reconhecida como um bem econômico”. Ela lembra ainda que, após a Guerra da Água, nos anos 2000, em que uma massiva mobilização popular conseguiu expulsar a transnacional norte-americana, Bechtel Holding, que geria o sistema de água e esgoto de Cochabamba, região central da Bolívia, após o aumento de até 200% no preço da água. Vale lembrar ainda que a privatização das águas de Cochabamba, dentre os motivos, ocorre por exigência do Banco Monetário Internacional (FMI) para a quitação das dívidas da Bolívia.

A pesquisadora destacou ainda que, em 2010, depois de ter ocorrido a Guerra da Água, a Bolívia levou para a Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) a proposta de que a água fosse um bem humano fundamental, aprovada de forma genérica sem tratar como um bem social e cultural, para além de econômico.  “Hoje, temos essas duas visões, do bem econômico, como da Conferência de Dublin, cujo principal ator político-econômico é o Conselho Mundial da Água, formado por representantes de empresas privadas que controlam 75% do mercado mundial de água potável; e uma segunda visão da água como um bem comum e inalienável, cujos principais atores que lutam por essa condição são os movimentos sociais e a Assembleia Geral da ONU, que, desde 2010, traz esse tema na nossa agenda”.

Em diálogo com essa questão, Luz Gonzalez abordou que o crescimento das energias renováveis nos últimos anos ocorreu sem incorporar os direitos trabalhistas e o diálogo com o movimento sindical. O conceito de Transição Energética Justa vem sendo apropriado pelas empresas, sem tratar como essa transição se dá no âmbito do trabalho e o que acontece com a massa de trabalhadores que perdem seus lugares para as máquinas. Ao contrário, o que se vê é um aumento da precarização nos países do sul global, enquanto nos países do norte resguardam-se os trabalhos com melhores condições e direitos. O que reafirma uma lógica neocolonial, dos países do sul como sumidouros de carbono e fonte de matérias-primas para propiciar a transição da matriz energética e alcançar o objetivo europeu de neutralidade climática em 2050. Tudo isso dentro dos carimbos verdes. Fica nítida a falta uma perspectiva justa na proposta de Transição Energética prevista no Pacto Verde Europeu.  com uma possibilidade significativa de aumento da extração de minérios e água dos países da América Latina para subsidiar energias ditas limpas, como carros elétricos ou hidrogênio “verde” tão discutido.

Nilce Pontes, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), conta que em muitas localidades só em 2013, com o programa Luz para Todos, tiveram acesso à energia elétrica, no entanto agora a discussão já é por uma transição para energias renováveis. “Só que essas energias não são para nós enquanto povo, são para os grandes empreendimentos”. Ela ainda pontua que as estruturas da institucionalidade reforçam o poder do grande capital na exigência de registros que criam uma barreira de acesso à comercialização dos produtos e na fiscalização que ocorre com mais rigor sobre os territórios dos pequenos. “O racismo ambiental mais do que nunca tem matado os povos das florestas, tem sucateado os nossos direitos e usurpado os nossos modos de vida”. 

A agroecologia, já praticada secularmente pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, vem sendo apropriada pelas empresas, em um conceito apresentando como projetos de sustentabilidade ambiental. Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

Ela coloca que há uma apropriação do termo agroecologia pelas empresas, apresentando como projetos de sustentabilidade ambiental. “Só que isso é mercantilizado, é precificado, a nossa agroecologia, que leva em consideração as práticas e os saberes tradicionais, não é entendido como agroecologia”, reforça e exemplifica que a roça de coivara utilizada nos territórios quilombola, prática muitas vezes enquadrada como crime ambiental, em que as comunidades são criminalizada, enquanto os incêndios criminosos realizados por grileiros para abrir espaços para plantio de monocultura não há o mesmo empenho em responsabilizar.  “A ideia é que a gente produza alimento e comida de verdade para todos, porque a gente tem condições de fazer essa sustentabilidade do Brasil para todos. Se nós temos terra e territórios, porque não podemos produzir o nosso próprio alimento?”, questiona e ela pontua ainda que para pensar uma economia que inclua os povos da floresta, é preciso olhar sob a  perspectiva de que “alimento de verdade se produz na floresta”. 

As comunidades extrativistas já enfrentaram muita luta para instituir as institui-se a primeira reserva extrativista no Pará. Hoje somam 12 Resex marinhas em todo o estado. Agora, a empresa Carbonext quer instalar um projeto de Redd+ sem um diálogo transparente com as comunidades. É o que denuncia Célia Regina Neves, liderança da Resex Mãe Grande Curuça. “Eles só discutem uma cláusula com a comunidade que é de 50% para a comunidade, 50% para a empresa, mas essa porcentagem do quê? Eles não dizem. É um processo desequilibrado, pois eles colocam 100% da área em 20 anos com a associação mãe da Resex outorgando o que a empresa quer, mas se o mandato da presidência da associação é de 3 anos como vai assinar um convênio de 20 anos?”. O caso da Resex Mãe Grande é mais um exemplo de como os projetos de compensação de carbono se mostram, antes mesmo de instalarem-se, um problema para as comunidades, gerando divisão e conflitos em processos comunitários desenvolvidos durante décadas.

Célia Neves, denuncia que a empresa Carbonext quer instalar um projeto de Redd+ sem diálogo transparente com as comunidades das Reservas Extrativistas do Pará. Foto: Carol Ferraz /Amigos da Terra Brasil

As denúncias de projetos que buscam explorar a sociobiodiversidade da região se avolumam. Em muitas falas, a mesma perspectiva: é preciso valorizar e defender os modos de vida das comunidades que secularmente vivem naquela região com a natureza, sendo parte da riqueza cultural e de vida que a Amazônia transborda. As propostas que tentam subverter esse jeito de viver, querem transformar os povos da floresta em assalariados, deixando seus modos de vida de lado e incorporando a lógica do capital em suas vidas.

Diferente do que o capitalismo verde quer implantar, é preciso reafirmar: a natureza não tem preço, tem valor!

O dia de encontro encerrou a entrega de propostas do Grupo a candidatas e candidatos à Câmara dos Deputados pelo Pará.

Veja mais fotos: