Certificação sustentável e comércio verde

Confira o debate sobre como as cadeias globais de produção de commodities ditas “livres de desmatamento” e o investimento em desertos verdes tem impacto no clima e em comunidades tradicionais, especialmente nos países do sul-global

No quarto episódio da série de lives “Diálogos Inconvenientes”, o Grupo Carta de Belém aprofunda a crítica sobre o  tema “Certificação sustentável e comércio verde”. O debate foi mediado pela Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural Bárbara Loureiro, membra da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e contou com a presença da pesquisadora Camila Moreno, membra do Grupo Carta de Belém, do sociólogo Marcelo Calazans, coordenador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) no Espírito Santo e do cientista político Thomas Fatheuer, da Rede Cooperação Brasil (KOBRA), que integraram o corpo de debate. 

Uma das mais ambiciosas promessas da agenda de governança ambiental global, com o maior apelo junto aos consumidores, é de que com a certificação ambiental seria possível tornar livres de desmatamento as principais cadeias de produção de commodities tropicais, entre elas a soja, gado e azeite de palma. A propaganda sustenta que as tecnologias digitais ajudariam a rastrear  e monitorar todo o processo produtivo, dando uma maior transparência e, assim, criando as condições para pressionar por uma produção mais sustentável. É por meio deste discurso que a certificação ambiental vem crescendo como uma aposta central para garantir a sustentabilidade do comércio global. No entanto, os dados de aumento do desmatamento no Brasil, por exemplo, revelam que esse objetivo não vem se concretizando. “Com o avanço da certificação, é importante retomarmos as promessas vazias dessa ferramenta e as lições de como este processo, vinculado à obtenção de selos e de padrões globais, têm operado nos territórios para desmobilizar, cooptar e dividir as comunidades e lutas globais”, argumentou Bárbara Loureiro, dando início ao último painel “Diálogos Independentes”.

Camila Moreno trouxe um pouco do contexto histórico dessa tentativa de harmonização das mercadorias e da criação de padrões globais por meio da certificação. Um processo que não é de hoje, ocorre desde a segunda metade do século 20. Tivemos as primeiras experiências já em 1946/47, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, no início da construção do capitalismo como está estruturado atualmente, com  a hegemonia do dólar no mercado internacional e o domínio das transnacionais no sistema agroalimentar global. Por sua vez, as certificações ambientais surgiram com o movimento ambientalista nos países do Norte na década de 70, especialmente na Alemanha.

No entanto, é na década de 90, com o fenômeno da Globalização, que certificações como as ISO ganharam força. As empresas tinham que conquistá-las e se adequarem a uma série de padrões para se inserirem nesta liberalização geral do comércio. “Com isso, veio forte a agenda do comércio justo, que em algum momento ocupou muito os movimentos sociais, trazendo encapsuladas as certificações do cacau/chocolate, do açúcar, o ‘açúcar ético’. Foi neste momento que chegou a certificação que muitos devem conhecer, o FSC [Forest Stewardship Council/ Conselho de Manejo Florestal]. Também vimos, há 10 anos, o debate da certificação se casar com os agrocombustíveis, como soja, óleo de palma, a iniciativa do etanol da cana-de-açúcar, tudo ‘sustentável’. São coisas que a cada momento se apresentam enquanto promessas, como se, por meio de um comércio que tenha o poder de regular as relações sociais, nós vamos resolver as grandes questões que nos afligem”, avalia Moreno.

Nos dias de hoje, a principal mudança trazida pelas commodities “livres de desmatamento” é a migração para uma autorregulação do setor. A legislação ambiental não será mais prerrogativa e nem estará centrada na ação do Estado e nem nos órgãos de fiscalização. A aposta é de que os produtores irão se adequar à legislação por si mesmos ao serem pressionados pelas barreiras impostas por outros países, se não quiserem ter prejuízo. Pela lógica imposta atualmente, o consumo seria a grande força decisiva para civilizar os processos, sobre o que a membra do Grupo Carta de Belém levantou dúvidas. Será mesmo que o consumo consciente irá nos salvar? “Toda a massa da população que não tem este poder de consumidor, que não pode chegar no mercado e decidir, pagar mais ou menos por uma marca que ofereça um QRCode está excluída do processo decisório, não será força na construção do futuro que se quer”, alerta Moreno.

A segunda questão apontada pela painelista é que o atual processo de certificação global desfoca do problema principal, que é o sistema agroalimentar controlado pelas transnacionais, e passa a destacar o modo de como os alimentos são produzidos. Dessa forma, as pessoas não questionam que a demanda de soja irá se expandir cada vez mais, o que é preocupante, pois esta commodity é o grande vetor do desmatamento.“Por exemplo, justifico que vou criar uma linha de proteínas à base de plantas, que em sua maioria vem a ser soja, e que por isso será neutra e sustentável, e terei minha carne de soja, leite de soja etc.”, explicou. Também não se fala do processo produtivo baseado na monocultura, no plantio de transgênico e no uso de agrotóxicos, tudo fica fora do grande debate. “Reduzo essa visão e gero o ‘fantasma’ do desmatamento, que embora seja real, acaba ocultando várias outras coisas”, argumentou Moreno. Assim, se instaura um modelo neocolonial, que centra-se apenas em garantir que as formas de produção de commodities, no sul global, subjetivamente compreendido como fonte do atraso e da insustentabilidade, serão agora regradas e monitoradas pelas empresas controladoras das cadeias de valor e pela consciência dos seus consumidores no norte global, como se a demanda global dos países do norte fosse inquestionável, legítima, ética e sustentável, ou até mesmo ‘a solução’ para que as suas ex-colônias no sul produzam mais e de forma mais verde e eficiente.

 No entanto, a fase que vivenciamos hoje conta com uma novidade: a fusão do sistema anterior (em que o comércio internacional e as transnacionais estão acima até mesmo dos estados nacionais) com a agenda do clima, da descarbonização, com os compromissos verdes das empresas e com as estratégias de carbono zero (net zero). “Essa venda da soja ‘livre de desmatamento’ passa a ser uma engrenagem numa dinâmica em que o comércio internacional é cada vez mais regulado por barreiras não tarifárias, em que o clima e o cumprimento das ações climáticas passam a ser barreiras para o comércio. São criadas preferências comerciais e tarifárias, mercados institucionais para produtos livres de desmatamento e carbono zero, seja para merenda escolar, hospitais, campos de refugiados, para abastecer exércitos e polícias. Outra questão que vem sendo desvelada pelo Grupo Carta de Belém, diz Moreno, é que esta financeirização associada à agenda do clima, do carbono neutro, somente é possível com a digitalização. “Não posso certificar este carbono da soja neutra se eu não tiver uma gigantesca infraestrutura de monitoramento, de controle, de vigilância, de sensores, de drones”. Para ver mais sobre a entrada das BigTechs no agronegócio veja aqui.. A membra do Grupo Carta de Belém alerta que esta lógica da financeirização acaba gerando também novos fenômenos que atingem diretamente as comunidades locais em suas formas de organização e as tornam dependentes com pagamentos por serviços ambientais e com bolsas e auxílios que não serão mais vinculadas a direitos e  à programas públicos, mas a empresas e a tutelas de transnacionais nos territórios. 

O sociólogo Marcelo Calazans, da FASE, trouxe para o debate três questões que considera importantes serem desvendadas acerca da certificação florestal. A primeira trata da apropriação do conceito de floresta por organizações financeiras mundiais e pelo agronegócio. Com a ajuda da linguagem aplicada pela engenharia ambiental, estes setores econômicos adaptaram o conceito de “floresta” para incluir as monoculturas de pinus e de eucalipto e, desta forma, conseguir certificação sustentável, agregando mais valor ao produto final. Atualmente, no Brasil há cerca de 10 milhões de hectares desses plantios, concentrados especialmente no Norte de Minas Gerais, onde a madeira é utilizada como carvão vegetal para a fabricação de ferro gusa nas siderúrgicas, e nos estados da Bahia, Espírito Santo, Paraná, Maranhão e Mato Grosso do Sul para a produção de celulose. Calazans destaca que os plantios de pínus e de eucalipto são de uma única espécie, com ciclos cada vez mais curtos, que hoje alcançam entre 5 e 6 anos, podendo diminuir ainda mais com as árvores geneticamente modificadas. “Floresta não pode ser definida como uma certa área preenchida por um conjunto de árvores numa certa estatura. Isso é uma definição totalmente absurda. Eles chamam terra de substrato, veneno e agrotóxicos de remédio e vão criando toda uma terminologia para se referir a grandes monoculturas de eucaliptos e de pinus como se fossem florestas. É óbvio que um sistema desses não é florestal e só sobrevive mediante muita química, não é um sistema estável”, sustentou. 

A certificação florestal e essas florestas plantadas interessam ao agronegócio porque a certificação FSC pode gerar, no consumo final, um sobrevalor de 15% a 20% no valor da celulose ou do produto que será gerado a partir da queima da madeira. “Precisamos disputar o conceito de floresta e que não sejam financiadas grandes plantações que destroem terras de quilombolas, de indígenas, pescadores, camponeses e que são um grande obstáculo para a reforma agrária, porque avançam sobre áreas que poderiam ser destinadas para ela”, defendeu o sociólogo. Outra questão é o princípio 10 do FSC que originalmente certificaria apenas manejos de florestas nativas, de preferência de comunidades tradicionais, pensando no mercado da fabricação de móveis. No entanto, os setores da celulose e da siderurgia se articularam e influenciaram na criação deste princípio e, por meio dele, conseguem certificar todos os seus desertos verdes – que no Brasil têm um histórico de violação de direitos humanos, de conflito com comunidades indígenas e quilombolas e destroem o meio ambiente. 

“E por último, o terceiro aspecto é o do clima, cujo debate tem se reduzido ao cálculo de moléculas e de emissões de carbono. A própria PETROBRAS está dizendo que vai neutralizar 19% de suas emissões. As empresas de celulose veem no mercado de carbono um grande atrativo para financiar a expansão da monocultura”, pontua Calazans. Ele chama a atenção para o fato de que essa estratégia não seria possível sem a participação de grandes organizações conservacionistas do greenwashing e do mercado verde. “Aqui nas certificações do Brasil, ao lado da Suzano está a WWF, a Rede Mata Atlântica e tantas outras. As empresas fazem conexões com grandes ONGs ou ONGs locais que sobrevivem em função das corporações e, com isso conseguem redirecionar o debate, que seria o da redução do consumo do papel e de proteção das florestas, e transformar em um debate de que se ‘pode aumentar o consumo porque as madeiras são plantadas e não está destruindo a mata nativa, o que é uma grande mentira”, critica. 

Thomas Fatheuer, da Rede Cooperação Brasil (KOBRA), falou sobre como a promessa das certificações funciona no contexto do consumidor europeu. Estamos vivendo numa época em que sempre aparecem conceitos e palavras mágicas, uma delas é a nature-based solutions (soluções baseadas na natureza). Ela está no centro dos debates internacionais. “O maior exemplo é plantar árvores para sequestrar CO2. Isso é visto mundialmente como uma grande solução de contribuição da natureza no combate às mudanças climáticas”, analisa. As emissões de CO2 do mundo industrializado, causadas pela queima de energia fóssil e massivamente presentes nos países do Hemisfério Norte, a exemplo da China, são mascaradas por uns e motivo de preocupação para outros. Enquanto os países nortistas seguem firmes na corrida industrial sem alterar em nada seu modelo de consumo, a “solução” do problema é jogada para países do sul global. “Quem deveria fornecer as soluções? Claro, os países do sul. Isso quer dizer que essa mania de plantar árvores em grande escala vai acontecer especialmente nos territórios do sul”. O cientista político relata ainda que, no início de 2020, antes da explosão da pandemia do Novo Coronavírus, no “famoso encontro de Davos, houve uma competição de promessas de plantar bilhões de árvores. Dessa maneira, os territórios do sul sempre são mais subordinados a uma lógica de clima”. Ou seja, o conceito de “soluções baseadas na natureza” está dentro de um contexto neocolonial. Tratando-se do sequestro de CO2, por muitos uma solução aclamada, na verdade não é assim tão perfeita. As árvores sequestram CO2, mas especialmente na fase de crescimento. Então, uma floresta antiga, como a  Floresta Amazônica, não serve tão bem, visto que ali o dióxido de carbono se encontra em equilíbrio. “Tem um pequeno problema. As árvores crescem, sequestram CO2, muito bom, mas e depois? Você as tira e transforma em alguma coisa. Então vão emitir de novo o CO2 já sequestrado. Por isso, a solução não é perfeita ainda”, declara Fatheuer. Ele explica que as certificações entram com grande importância neste caso porque é preciso ter um registro de quanto CO2 é sequestrado, de como anda o balanço do mundo.

Nesses 10 anos de existência, o Grupo Carta de Belém tem focado na compreensão das dinâmicas estruturais para entender as mudanças no capitalismo. “É um momento de bifurcação da história. Ou as pessoas se alinham com esse novo espírito do Capitalismo, um Capitalismo multi stakeholder (de múltiplos interesses), no qual as empresas não querem só o lucro, elas querem fazer o ‘bem’, gerar impacto ambiental e social, querem ‘mudar o mundo’, ter propósito. Assim se cria um circuito fechado, uma economia circular, na qual não existe nada fora das lógicas do capitalismo e da financeirização. Ou eu vou dizer: não, a gente luta contra o processo de financeirização porque ele arrasta consigo uma objetificação da natureza, da vida humana”, expõe Camila Moreno. De acordo com ela, esse momento histórico do capitalismo chegou a um limite de trazer para dentro da fronteira da mercadoria tudo o que até então estava fora, de forma que não é simples viver sem ser parceiro dessas grandes indústrias, sem ser parte ou então ser massacrado por esse sistema, “é um capitalismo que está conseguindo capturar a imaginação das pessoas”. Para Moreno, é o momento de “caminhar, sentar, discutir e resistir juntos, criar alternativas para sair dessa roda do capitalismo, da sociabilidade capitalista e construir outro circuito. Circuitos curtos onde vale a palavra, onde não depende dessa intermediação do global, do transnacional”. 

A série de lives “Diálogos Inconvenientes” foi uma proposta do Grupo Carta de Belém de promover um ciclo de debates e exposições acerca de temas tratados pelo grupo que são urgentes no contexto atual de redesenho do capitalismo dito verde em escala global que coloca em risco a própria existência da vida humana a longo prazo na Terra. Os debates trazem luz para a importância de construção de sociedades baseadas nos princípios da Agroecologia para transformar a realidade atual e garantir a soberania alimentar e os direitos dos povos e da sociobiodiversidade. Para quem perdeu ao vivo, é possível acessar os quatro episódios da série no canal do Grupo Carta de Belém no Youtube.

Veja a live na íntegra: