Lógica financeira contra lógica da sobrevivência

“De pouco adianta a atitude cética diante do problema, que privilegia
a lógica financeira. De 4 mil estudos acadêmicos publicados em 20
anos, 97,1% atribuíram as mudanças do clima a ações humanas”, escreve
Washington Novaes, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo,
05-07-2013.

Eis o artigo.

Talvez não haja exemplo mais adequado da prevalência da lógica
financeira no mundo do que o recente lançamento do plano do governo
norte-americano para enfrentar mudanças climáticas (Estado, 26/6). Na
ocasião, disse o presidenteBarack Obama que se recusava a “condenar
esta e as futuras gerações a um planeta que esteja fora de controle”.
Por essa razão estabelecia como metas reduzir emissões de poluentes na
produção de energia, adaptar cidades aos eventos climáticos extremos
que já acontecem e colaborar para um acordo global a ser firmado em
2015 e que estabeleça metas obrigatórias de redução de emissões de
todos os países a partir de 2020. Para isso propõe reduzir as emissões
de usinas termoelétricas dos EUA, ampliar em 30% o orçamento para
geração de energia limpa e até 2020 aumentar a produção desta em
usinas eólicas e solares. Só que, ao mesmo tempo, concorda com a
construção de um pipeline para levar mais petróleo do norte do Canadá
até o Golfo do México, “se não agravar os problemas do clima” (COMO?).
Mas já se sabe que, mesmo sem o pipeline, o petróleo – que aumentará
as emissões no Canadá e nos EUA e complicará a situação no Ártico –
será transportado por via férrea.

Não é um problema apenas da maior economia global. A última reunião da
Convenção do Clima (em Bonn), preparatória para a assembleia mundial
que será realizada em Varsóvia em novembro, terminou há poucos dias em
impasse que paralisou tudo. Rússia, Ucrânia e Bielorrússia travaram as
propostas ao exigirem que se revisse a discussão sobre um acordo
global em 2015, a vigorar em 2020, que obrigue todos os países a
aceitar metas de redução de emissões. É um segredo de polichinelo que
esses três países até torcem em silêncio por um aumento da temperatura
que acelere o derretimento da camada de gelo na Sibéria e permita
extrair mais – e a menores custos – minérios como cobalto, níquel,
estanho e outros, além de liberar novas áreas para a agricultura.

Já a China é o país que mais está investindo em energias como a eólica
e a solar, mas também assumiu o primeiro lugar em emissões, superando
os EUA. E, certamente, é o país onde morrem mais pessoas por causa da
poluição – menciona-se até 1,2 milhão em um ano (Instituto Carbono
Brasil, 18/6).

Chega-se ao nosso quintal. Embora com possibilidade de ter matriz
energética limpa e renovável – com hidreletricidade, eólica, solar, de
marés, geotérmica, de biomassas -, o governo brasileiro programa
leilão para novas usinas excluindo as eólicas, já competitivas com as
outras fontes em termos de preços, e privilegia usinas a carvão
mineral, a fonte mais cara e poluidora. Segundo declaração do
diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) – já
comentada neste espaço (14/6) -, “se colocar todas as fontes em leilão
obviamente a eólica vai ganhar”. E ponto final. Não importa se as
eólicas geram energia sem poluir e a preços muito menores.

De que valem advertências como a da secretária-geral da Convenção do
Clima, Christiana Figueres, que aprovou algumas intenções do plano do
presidente Obama, mas disse que “ainda é pouco para enfrentar o vulto
dos problemas na área”? Ou as da Agência Internacional de Energia
(AIE), de que “o mundo não está no caminho para atingir o objetivo de
impedir que a temperatura do planeta ultrapasse 2 graus Celsius até
2050” (10/6)? E as consequências poderão ser gravíssimas – como um
aumento entre 3,6 e 5,3 graus. As emissões continuam crescendo – mais
1,4% em 2012, com um recorde histórico, apesar de alguma redução nos
EUA (200 milhões de toneladas) e na Europa (50 milhões de toneladas).

Segundo o relatório da AIE, “podemos esperar a intensificação de
eventos extremos” – tempestades, incêndios, ciclones, ondas de calor
mais frequentes, aumentos da temperatura, elevação do nível do mar.
“Energia é o maior desafio”, pois essa área responde por dois terços
das emissões. E 80% da energia vem de combustíveis fósseis, que
continuam a ser subsidiados no mundo. Qual é a lógica, senão a
financeira?

Os rumos no Brasil também são preocupantes, pois o setor de energia,
entre 2005 e 2010, respondeu por 21,5% das emissões. E pelo menos 10%
dessa produção é desperdiçada. As cidades e a agricultura já sentem os
efeitos de temperaturas mais altas e outros problemas climáticos, que
se refletem principalmente no campo das exportações, com perdas de R$
5 bilhões no ano. E na necessidade de fazer “migrar” algumas culturas,
como já ocorreu com a do café, que deixou os Estados de São Paulo e do
Paraná em busca de terras mais altas em Minas Gerais que anulassem o
aumento de um grau na temperatura, que prejudica a floração e a
produtividade. Mas a temperatura em Minas também está subindo.

Segundo estudo recente da Universidade de Tóquio, divulgado pela
Nature Climate Change em junho, o aquecimento e o risco de inundações
no fim deste século poderão chegar a 42% da superfície terrestre, com
mais gravidade no Sudeste da Ásia, na África e na região dos Andes
(que verte água para bacias brasileiras). Para reverter o quadro seria
preciso impedir – diz o Comitê Climático da Austrália (17/6) – que 80%
das reservas de combustíveis fósseis sejam utilizadas. Até 2050 não
poderia ser ultrapassado um total de 600 bilhões de toneladas de
poluentes, para chegar a zero naquele ano. Mas no ritmo atual as
emissões serão muitas vezes maiores que esse limite.

Nova York já tem um projeto de US$ 20 bilhões para instalar diques,
comportas e restaurar pântanos. A Holanda, com dois terços da
população vivendo em áreas abaixo do nível do mar, já dedica 1% de seu
orçamento aos diques, canais, barreiras de areia e até casas
flutuantes. Bangcoc, na Tailândia, implanta barreiras.

E de pouco adianta a atitude cética diante do problema, que privilegia
a lógica financeira. De 4 mil estudos acadêmicos publicados em 20
anos, 97,1% atribuíram as mudanças do clima a ações humanas.

Fonte: Estadão/Opinião