O negócio da fome

Veja como foi a live do Grupo Carta de Belém sobre a questão alimentar

 As 16h das quintas-feiras dos meses de junho e julho tornou-se a hora dos “Diálogos Inconvenientes”. A série compreende quatro debates ao vivo e tem como objetivo  tratar de temas inconvenientes ao embate hegemônico, ou seja, Diálogos Inconvenientes aos interesses do grande capital e aos assuntos abordados pelos meios de comunicação de massa. Esta primeira edição teve como tema “A fome como negócio e o roubo dos alimentos”. 

Larissa Packer, da GRAIN e membra do grupo Carta de Belém, foi a responsável pelas boas vindas a tod@s os participantes, já apresentando que é “bem inconveniente constatar que o Brasil, no ano em que volta para o mapa da fome da ONU, também foi o  ano que o agronegócio comemorou recordes de exportação de produtos agroalimentares, produzindo exportação de alimentos, mas um deserto alimentar para seu próprio povo”.

 Nesta primeira edição dos “Diálogos Inconvenientes” a conversa contou com a mediação de Bel Coelho, chef do Cuia Café e Restaurante e ativista;  além do  economista João Pedro Stédile, do Movimento Sem Terra (MST), o jornalista João Peres, um dos fundadores do projeto “O Joio e o Trigo” e a assessora e pesquisadora  Maria Emília Pacheco, da FASE e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).  

Bel Coelho deu o tom da gravidade do problema: metade da população brasileira, cerca de 117 milhões de pessoas, vive sob insegurança alimentar no Brasil enquanto 19 milhões de pessoas passavam fome em dezembro de 2020, conforme pesquisa da PESSAN. Neste mesmo ano, o agronegócio, em meio a maior crise econômica e de saúde pública do país, anunciou o recorde de 100 bilhões de dólares em exportações. A fome na nação da supersafra não é uma novidade.

João Pedro Stédile inicia o debate recuperando como os movimentos sociais do campo, “em uma pequena sala ao lado das negociações da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e da Agricultura), no ano de 1996” colocaram a necessidade de se operar políticas estruturais para o combate ao modelo de desenvolvimento baseado em uma economia extrativa e colonial que subjuga a soberania dos países periféricos e a soberania alimentar dos seus povos. “Nessa conferência sobre a fome, a FAO evoluiu para um novo conceito, que é de segurança alimentar. E lá, eles definiram que era responsabilidade dos próprios governos, adotarem políticas públicas para não deixarem a sua população passar fome”. Esse conceito é sintetizado por Stédile como “entregar o peixe, porém a soberania alimentar é ensinar a pescar”. 

João Peres explica que a fome é um projeto de poder lucrativo, “a gente está em um momento em que, segundo as evidências científicas, os ultraprocessados na média vão se tornar mais baratos do que os alimentos in natura e do que os alimentos minimamente processados.  E uma vez que você cruza esse ponto, é muito difícil de retornar”. O jornalista explica como os chamados atacarejos se infiltraram pelo interior do país e se tornaram a galinha dos ovos de ouro das principais redes varejistas brasileiras, como Pão de Açúcar e Walmart, ao vender ultraprocessados a preços baixos à população de baixa renda. Os tais ultraprocessados fazem parte de um sistema alimentar que produz algo que parece alimento, mas na verdade se trata de uma fórmula química desenvolvida para aumentar a durabilidade nas prateleiras e gerar uma margem cada vez maior de lucro.

 As próprias empresas identificam que seus produtos não atendem a critérios saudáveis de alimentação. O The Financial Times em fins de maio publicou documentos internos em que a Nestlé, a maior empresa de alimentos do mundo, reconhece que mais de 60% dos produtos que comercializa — de chocolates e doces a cereais matinais e sorvetes — não atendem aos critérios necessários para serem considerados saudáveis e que algumas das categorias de bebidas e de alimentos que produz “nunca serão saudáveis, por mais que sejam renovadas”.

Maria Emília, ex-presidenta do Consea acrescenta: “é preciso garantir a democracia para a elaboração das políticas alimentares, tanto com o fortalecimento da soberania alimentar, como também desses espaços onde há concentração, onde há a contestação, onde se realizam no âmbito internacional, deveriam se realizar essas negociações. Isso significa que o chamado multilateralismo vai perdendo o seu lugar”. Tais espaços deveriam ser multilaterais e com ampla participação da sociedade civil, ao invés de estarem cada vez mais concentrados e influenciados por corporações. Por isto, a sociedade civil internacional não reconhece a legitimidade da Cúpula dos Sistemas Alimentares, uma invenção do Fórum Econômico Mundial para se pavimentar um caminho de lucro para estas corporações. “Isso significa que há o que nós podemos chamar de uma captura da governança pelas corporações. Porque este interesse do Fórum com as corporações, com as empresas transnacionais, de apoiarem e organizarem essa Cúpula mostra uma questão de poder, porque acaba aleijando o organismo das Nações Unidas ligado às questões da fome, retira a FAO do lugar”. Ela fala sobre o deslocamento da realização do encontro da FAO de Roma, onde é sua sede, para Nova York, o que evidencia materialmente os interesses em jogo e que, também, gera uma reação: “tem sido manifestada através de cartas abertas, de chamamento para participação, onde centenas e centenas de organizações e articulações no mundo vem chamando atenção sobre o significado dessa Cúpula. Cada vez se percebe mais a necessidade da democracia para que haja garantia das políticas públicas alimentares, tanto com o fortalecimento da soberania alimentar, como também desses espaços onde há a contestação, onde, no âmbito internacional, deveriam se realizar essas negociações. Isso significa que o chamado multilateralismo vai perdendo o seu lugar”.

O agronegócio e seus impactos negativos foi mais um entre os tantos temas abordados no debate. De acordo com Stédile, “temos o latifúndio improdutivo, que só se apropria dos bens da natureza, como esses que estão invadindo terra indígena, a turma da mineração, etc. Depois tem o agronegócio, que também ocupa grandes partes do nosso território, mas eles não produzem alimentos, eles produzem commodities para exportação”. Ele entra em conflito direto com as áreas de reforma agrária, cuja missão é produzir alimentos saudáveis para todo povo brasileiro, o que atravanca ainda mais o avanço alimentar do Brasil. O economista destaca ainda que “estamos sobre o império de 50 grandes empresas que controlam o setor alimentar no Brasil e produzem o que querem porque colocam o lucro acima da vida”. Isso vai de encontro à agroecologia, a qual tem em seus princípios ideológicos exatamente o objetivo oposto, pois, segundo Maria Emília Pacheco, “não está baseada no uso desses insumos químicos como o agronegócio e incorpora dimensões sociais e políticas. Sociais porque esse processo emancipatório supõe também o reconhecimento associado: não é a alimentação saudável, adequada apenas, que forma a agroecologia, é democratização do acesso à sua terra, dos direitos territoriais”.  

Quanto ao sistema alimentar, Maria Emília defende que é uma “questão de direito. A alimentação não pode ser considerada como mera mercadoria”. Tal fala é exemplificada no caso do preço do arroz do MST, como contou Stédile: “Porque aumentou o preço do óleo de soja? Porque o preço da soja no mercado internacional, controlado por cinco empresas na bolsa de Chicago aumentou. Mas não é que aumentou o custo de produção, aumentou a taxa de lucro das empresas.Então, mesmo quando eles não produzem alimentos pro mercado interno, eles acabam repassando para nós, que foi o que aconteceu no caso do arroz. O arroz não aumentou o custo de produção ano passado quando deu o salto. Os agricultores já tinham entregue a sua produção para esse atacarejo. Três grandes empresas de arroz atacadistas, entre elas a maior é a Camil, controlam 60% do mercado. Depois que eles acapararam o arroz, eles colocaram o preço que quiseram. Foi por isso que nós do MST não aumentamos o nosso preço, porque o custo era o mesmo. Seria uma injustiça nós aumentarmos o preço do nosso arroz”.  

Ao longo da fala de Peres, se pôde compreender que os alimentos ultraprocessados, tão comuns nos dias de hoje e cada vez mais baratos, desestabilizam o programa de alimentação brasileiro.  O problema vai além, pois o preço desses alimentos industrializados, se colocado na balança, na verdade é bem alto. “Ele é um preço enganoso, porque não está calculando as externalidades desses produtos”, ou seja, o valor não incorpora os impactos causados por esta produção de larga escala para a fertilidade dos solos, disponibilidade de água, para a biodiversidade, as baixas condições trabalhistas, além dos impactos à saúde. 

“Isso nunca tinha acontecido na história do Brasil. Nós temos ao mesmo tempo uma crise profunda estrutural do capitalismo, que jogou na sarjeta 60 milhões de trabalhadores, os mesmo que estão passando fome”. Esta fala de Stédile chama a atenção para a extensão atual do problema da fome, questão expoente que apenas pode começar a se resolver com a promulgação de políticas públicas por parte do Estado, em prol dos interesses da maioria. Em uma sociedade na qual impera o poder corporativo, para garantir um futuro de segurança alimentar para o povo brasileiro, portanto, é necessário que a impunidade e os bilionários incentivos fiscais  dirigidos às  grandes empresas termine. Isso apenas poderá acontecer, como sublinha Stédile, se a população se impuser e for ouvida, pois “as reformas estruturais só virão pelo povo organizado e mobilizado”.

Roubo de biodiversidade e da qualidade de vida

Para nos aprofundarmos ainda mais no debate, é importante partirmos da compreensão de que os sistemas alimentares industriais, desde o período colonial até hoje, vêm sendo estruturados a partir de um grande roubo das redes alimentares, da biodiversidade e do trabalho vivo dos agricultores do mundo que disponibilizaram sementes de plantas e raças animais para agricultura e alimentação de todas as sociedades.

Estas redes alimentares, e também medicinais, disponibilizadas para a humanidade, vêm sendo conformadas pelas digitais históricas do trabalho intergeracional camponês, de agricultores familiares, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais de todo o mundo. A indústria agroalimentar global se especializou em fazer negócios a partir da extração de mais valia deste trabalho intergeracional dos agricultores e dos recursos naturais — solos, água, biodiversidade principalmente —  que estão embutidos nas redes alimentares do mundo. Achatam preços da produção para o agricultor, exploram trabalho análogo ao de escravo, capturam grandes extensões de terras, água, expropriam famílias e povos de suas casas e territórios, aplicam grandes volumes de agrotóxicos, muitos deles proibidos em seus países de origem na Europa. Soja, carne de frango, boi, e aves, produtos frescos como frutas tropicais, legumes chegam à Europa e EUA com valores mais baratos do que sua própria produção nacional.

Esta expansão da fronteira agrícola para exportação produz uma ocupação industrial do espaço rural, com a consequente homogeneização da paisagem, com limpeza de gente e de biodiversidade, caldeirão de futuras pandemias. Por outro lado, chega às populações mais pobres do Sul global, produtos ultraprocessados de baixíssimo valor nutricional, quase uma “ração humana”, gerando organismos imunodeprimidos, insegurança alimentar e nutricional e porta de entrada para diversas comorbidades e doenças.  O roubo, portanto, não é apenas das redes alimentares e biodiversidade, mas da própria qualidade de vida. 

Corporações da agricultura após a chamada “revolução verde”, passam a vender um pacote tecnológico com valor agregado – basicamente sementes híbridas e transgênicos dependentes de agrotóxicos para funcionar,  com aplicação de direitos de propriedade intelectual, mais o maquinário agrícola -, garantindo seu mercado consumidor e lucros nos países do sul global. Por outro lado, garantem suas margens de lucro com a compra de commodities agrícolas a preços irrisórios. Inclusive os produtores nacionais integrados aos agronegócios globais, e que anunciam lucros recordes com exportação de soja, têm uma significativa extração de mais valia de seu trabalho e produção.

Esta economia baseada no agronegócio e em commodities agrícolas e minerais é uma economia colonial, atrasada e dependente. Fere a soberania nacional e dos povos, fere a soberania alimentar e a autodeterminação das sociedades. Por isto, camponeses e movimentos sociais de luta pela terra em todo mundo vem construindo formas de enfrentamento ao poder corporativo sobre as agriculturas e suas redes alimentares. Há pelo menos 25 anos, a Via Campesina internacional construiu o conceito de soberania alimentar a fim de afirmar a autonomia dos povos sobre o que produzir, como produzir, para quem produzir e em que condições produzir. 

A agroecologia é uma forma de viver e produzir alimentos livre deste controle corporativo, diversas experiências territoriais e políticas públicas conquistadas pelos movimentos foram e estão sendo produzidas. Desafios de como garantir comida de verdade para a população pobre nas cidades e nas periferias ganham centralidade numa economia pós covid e a solidariedade dos trabalhadores do campo e da cidade está em vias de sair da mera experimentação.

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Veja a live na íntegra: