Denúncia: invisibilização dos povos e comunidades tradicionais no CAR

Desde a sua implementação em 2014, o CAR (Cadastro Ambiental Rural) é criticado por organizações e movimentos sociais, seja devido à sua inadequação frente aos territórios coletivos, seja em razão da falta de transparência de sua gestão, de competência do Serviço Florestal Brasileiro e das Secretarias Estaduais de Meio Ambiente, principalmente quanto à análise das áreas sobrepostas. Ainda em 2018, os erros de inscrição e validação no sistema de cadastramento não foram corrigidos, agravando-se conflitos fundiários devido à confusão realizada pelo CAR entre a análise ambiental e de posse e propriedade da terra.

A situação é ainda mais grave para os casos em que os povos e comunidades tradicionais não têm a oportunidade de inscrever-se no CAR e de manter sua inscrição válida no sistema. O CAR acaba por estimular inscrições individuais em áreas coletivas, constituindo uma base de dados útil para o processo massivo de grilagem e a inserção de milhares de hectares no mercado de terras.

carta car PNG

No Estado do Tocantins, as comunidades quilombolas foram obrigadas ilegalmente a apresentar documentos fundiários em uma análise feita pelo Naturatins, que adotou critérios usados para imóveis rurais, solicitando feições que não são obrigatórias para os CARs de povos e comunidades tradicionais. Mesmo após a assinatura de Termo de Acordo entre Naturantins e MPF em reconhecimento aos direitos constitucionais quilombolas, algumas comunidades tiveram suas inscrições arbitrariamente canceladas, mesmo estando ativos no SICAR federal. Nestes territórios cancelados no Estado, constam apenas os CARs de fazendeiros, cujo recibo do CAR estadual vem sendo suficiente para terem acesso a crédito e políticas públicas, independente do recibo federal do SICAR.

O Pará, que conta com investimentos específicos para o CAR de Povos e Comunidades Tradicionais através do Programa Municípios Verdes (PMV), não avança para a inscrição das comunidades num Estado que indica mais de 100 % de sua área dentro do sistema, realizando uma exclusão escandalosa dos territórios coletivos.

No caso do Mato Grosso, o CAR virou caso de polícia. Após abertura de investigação policial sobre suspeita de fraude na gestão do CAR, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Mato Grosso deve ser vista como um dos casos mais emblemáticos de como o favorecimento da estrutura de regularização ambiental, e diga-se da regularização fundiária, para o agronegócio envolve esquemas criminosos. A Secretaria, que recebe aportes financeiros de bancos alemães para regularização ambiental de imóveis rurais, estabeleceu sistema próprio de inscrição no CAR, sem possibilidade de autodeclaração de povos e comunidades tradicionais e em descompasso com a customização do sistema nacional.

“O CAR acaba por estimular inscrições
individuais em áreas coletivas,
constituindo uma base de dados útil
para o processo massivo de grilagem
e a inserção de milhares de hectares
no mercado de terras”

Tanto nos Estados do Tocantins, Pará, como no Mato Grosso, é possível observar um uso político e econômico do CAR em favorecimento da inscrição de grandes proprietários de terra, deixando de fora os territórios coletivos dos povos e comunidades tradicionais. Os órgãos estaduais do meio ambiente, de maneira ilegal, vêm analisando documentos de posse e propriedade, extrapolando sua competência, e facilitando a regularização das áreas do agronegócio e seu acesso a crédito no sistema financeiro. Nos Estados do Mato Grosso e Tocantins, o que vale é o recibo estadual para se ter acesso aos bancos e políticos públicas e não o recibo do SICAR federal, em um completo descompasso com a Lei 12.651/12, o Código Florestal, extrapolando a competência suplementar estadual na matéria.

Os Estados também vêm descumprindo a determinação do STF no julgamento das ADIs sobre o Código Florestal, de incluir todos os territórios de povos e comunidades tradicionais, inclusive os em processo de titulação e demarcação, no CAR e nos benefícios legais conferidos pela lei. Tendo em vista que apenas em março, quando do julgamento pelo STF, é que se tornou obrigatória a inclusão dos territórios em processo de demarcação e titulação, é imprescindível que haja um prazo específico de inscrição para estas áreas, que devem contar com os benefícios da gratuidade e apoio técnico no processo de inscrição, e ainda cumprir com o dever de se realizar a consulta livre, prévia e informada e de boa-fé antes de qualquer ato legal ou administrativo que os afetem.

O Sistema Florestal Brasileiro, apesar de vir adequando o CAR para povos e comunidades tradicionais, se omite e não dá publicidades aos seus atos administrativos, o que corrobora para que os Estados mantenham sua política de invisibilização dos territórios coletivos dos povos e comunidades tradicionais, principalmente os ainda em processo de titulação e demarcação.

Tendo em vista que as irregularidades e violações de direitos só se avolumam na conta do Sistema Florestal Brasileiro e das Secretarias Estaduais de Meio Ambiente, denunciamos a invisibilização dos territórios dos povos e comunidades tradicionais no CAR e cobramos a imediata publicidade e tomada de medidas legais e administrativas por parte do SFB e Órgãos Estaduais de Meio Ambiente – OEMAs para realizar um cadastramento destas áreas, precedido pela devida consulta, livre, prévia e informada, conforme determina a Convenção 169 da OIT.

Cuiabá, 17 de agosto de 2018.

Assinam:

Alternativa para Pequena Agricultura no Tocantins – APATO
Amigos da Terra Brasil
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Articulação Nacional de Quilombos – ANQ
Articulação Pacari de Raizeiras do Cerrado
Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais – AATR
Associação de Programas em Tecnologia Alternativas – APTA
Associação dos Remanescentes Quilombola da Ilha de São Vicente
Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia – AOPA
Associação Regional das Produtoras Extrativistas do Pantanal – ARPEP
Associação Regional de Produtores/as Agroecológicos – ARPA
Central Única dos Trabalhadores – CUT
Centro Burnier Fé e Justiça
Centro de Agricultura do Norte de Minas – CAANM
Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennès – CDHDMB
Centro Indigenista Missionário – CIMI
Centro Indigenista Missionário – CIMI/MT
Coletivo Urucum
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Comissão Pastoral da Terra/MT – CPT-MT
Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP
Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins – COEQTO
Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ
FASE
Federação das Organizações Quilombolas de Santarém – FOQS
Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso – FEPOIMT
FIAN Brasil
Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
Fórum de Mudança Climática e Justiça Social
Fundação Educacional e Cultural Barros
Fundação Luterana de Diaconia – FLD
GAIA
Instituto Caracol – Icaracol
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Instituto Socioambiental – ISA
Instituto Terramar
Malungu – Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MT – MST-MT
Movimentos Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB
Operação Amazônia Nativa – OPAN
Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras
Rede Ecovida
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém – STTR de Santarém/PA
Sociedade Fé e Vida
Terra de Direitos