Amazônia dividida entre os índios e a iniciativa privada

  • Criação de reservas indígenas e transferência de terras para empresas crescem no bioma, desafiando o interesse e o investimento do governo em suas áreas verdes

Renato Grandelle (Email)

Publicado:2/07/13 – 11h14

Índio da tribo munduruku, na Amazônia
Foto: UESLEI MARCELINO / Ueslei Marcelino/Reuters

Índio da tribo munduruku, na AmazôniaUESLEI MARCELINO / Ueslei Marcelino/Reuters

RIO – Quem é o dono das florestas? A pergunta foi explorada num polêmico relatório apresentado em junho por Doug Boucher, diretor de Pesquisa e Análise Climática da União de Cientistas Comprometidos (UCS), uma ONG que reúne 400 mil cientistas e cidadãos americanos. Em entrevista por e-mail à Revista Amanhã, Boucher, especialista na preservação de florestas tropicais, afirma que há uma “silenciosa revolução” na Amazônia, com a cessão de terras para duas frentes: a iniciativa privada e a criação de novas reservas indígenas, que já ocupam 20% do bioma. Embora seja defendida por alguns movimentos sociais, a cessão de um território tão grande ainda é vista com desconfiança por parte da população.

O pesquisador, diferentemente da maioria dos ambientalistas, defende pontos controversos ao minimizar o efeito da agropecuária na Amazônia, uma prática que já devastou uma região significativa do Leste do bioma, especialmente no Pará. Tampouco acredita que o crescimento populacional e uma maior demanda por alimentos representam uma ameaça à floresta.

Por que a posse de terras ocupadas por florestas está sendo transferida para as comunidades indígenas?

A principal razão para estas doações é a crescente afirmação pública dos direitos de propriedade dessas próprias comunidades, que contam com muitos aliados dentro dos movimentos sociais — ambientalistas, religiosos e ativistas de direitos humanos, entre outros. São pessoas que levantaram a causa dos povos de áreas florestadas em diversos fóruns, inclusive internacionais. A reivindicação dessas terras pelos índios acabou sendo encarada como uma questão fundamental de justiça.

Estas comunidades têm força e infraestrutura para administrar propriedades tão vastas?

Se falamos sobre o poder para que seus direitos sejam cumpridos, para defender suas terras e livrá-las de intrusos, a resposta é “não”. Estamos falando de comunidades pequenas, pouco estruturadas e que não podem patrulhar eficientemente suas divisas. Os governos precisam assumir esta responsabilidade. Não devem se restringir a reconhecer os direitos de propriedade.

Há, então, resistência à cessão de terras?

Certamente, inclusive dentro de agências governamentais e ministérios, que gostariam de controlar o maior número possível de propriedades (em vez de ceder as terras para os índios). A iniciativa privada também quer a propriedade das áreas verdes. E, na maioria dos casos, ela não ambiciona a produção, mas a especulação. Querem ter acesso à terra barata, para depois vendê-la com lucro. É um fenômeno muito comum na Amazônia.

A iniciativa privada é mais bem-sucedida na ocupação do bioma?

Não na América Latina. Na África, as empresas têm mais força na florestas tropicais. No Sudeste Asiático, há um equilíbrio na disputa de terras entre empresas e comunidades locais.

O que motiva o poder público a dividir a administração da Amazônia com grupos empresariais?

Acredito que o governo começa a entender que uma administração centralizada do bioma pode não ser a única alternativa — talvez sequer seja a melhor. Delegar esta responsabilidade a outros grupos pode trazer benefícios econômicos para o país. Daí pode vir até uma receita maior do que se as florestas estivessem sob a batuta do poder público. Esta conclusão, no entanto, ainda tem seus opositores.

A Noruega já investiu US$ 560 milhões no Brasil para que o país conserve suas áreas verdes, e adiantou que injetará ainda mais recursos na Amazônia. Por que ela tomou esta medida?

Trata-se de uma nação com histórico de ajuda financeira substancial para iniciativas que visem ao desenvolvimento. Agora, a Noruega elegeu as florestas como prioridade. Por ser um país pequeno, com menos de 5 milhões de habitantes, não pode mandar recursos simultaneamente para diversos setores. Sua opção pelas áreas verdes é lógica. A própria Noruega tem uma grande região florestada. Conversando com diplomatas do país, notei que estão impressionados pelas análises científicas que comprovam como a redução do desmatamento pode ser uma contribuição importante, e relativamente barata, para mitigar as mudanças climáticas.

Outros países desenvolvidos podem repetir o exemplo norueguês?

Acredito que sim. Certamente a Alemanha, a Espanha e o Reino Unido, entre outras nações europeias, já reservaram bilhões de dólares para usar de forma semelhante à Noruega. Até porque já houve, na ONU, um ampla aprovação do modelo do Redd+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, um montante aplicado por países ricos para abrandar os efeitos das mudanças climáticas). Então, embora ninguém tenha se movido tão rapidamente quanto a Noruega, acho que muitas nações acabarão indo pela mesma linha.

E qual seria a maneira ideal para as nações em desenvolvimento aplicarem estas doações?

Alguns países em desenvolvimento ainda contam com poucos recursos para conservar suas áreas verdes. Este esforço, por enquanto, é difícil. Não é o caso do Brasil, que já tem uma capacidade tecnológica avançada. Um exemplo é a sofisticada análise de dados realizada por satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Mas há um passo simples que diversas nações podem tomar, e que já faz muita diferença: reconhecer legalmente os direitos de propriedade de terras de suas comunidades indígenas.

No Brasil, há um eterno medo da “internacionalização” da Amazônia. A doação de recursos estrangeiros para a preservação do bioma incentivaria este temor?

Precisamos considerar o contraste entre dois fenômenos: a ocupação de terras por companhias estrangeiras e a crescente transferência de áreas florestadas para comunidades locais. Ao estabelecer reservas e diversas categorias de terras indígenas na Amazônia, o Brasil criou um novo caminho para desenvolver esta região. E é relevante afirmar que, em grande parte, esta medida foi realizada com o orçamento do país e um sólido apoio de sua população — e acredito que esta aprovação tenha vindo do país inteiro.

A população mundial é de 7 bilhões de pessoas. A busca por alimentos pode afetar as florestas?

Não necessariamente, por uma série de razões. O crescimento da população humana, nas últimas quatro décadas, foi de 2% ao ano. Até 2050, será anualmente de 0,75%. No Japão e em algumas nações europeias, este índice já estagnou, e o mesmo ocorrerá na China por volta de 2020. O desflorestamento é causado por poucas commodities, como soja, óleo de palma e carne, mas esta demanda deve-se à mudança de dietas, e não ao crescimento populacional. O avanço tecnológico proporcionou o aumento da produção agrícola global sem aumentar a área cultivada. Em duas décadas, a produção agrícola dos países em desenvolvimento foi incrementada em 3,4% por ano. O desmatamento, por sua vez, avançou apenas 0,3%.

E no Brasil, esta lógica se repete?

Sim. A indústria de soja do país tem sido bem-sucedida na redução do desflorestamento, tanto na Amazônia quanto no Cerrado, e isso está ocorrendo sem que ela prejudique sua rentabilidade. Este é um dos maiores exemplos de como uma indústria pode mudar rapidamente sua estratégia de desenvolvimento, e sem sacrificar sua prosperidade. Então, há uma grande probabilidade de que consigamos alimentar a população ao mesmo tempo em que diminuímos o desmatamento. Esta mudança traria importantes benefícios para as comunidades locais, para a biodiversidade e para o clima.

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