Com tramitação a toque de caixa, PL 528 quer regular Mercado Brasileiro de Redução de Emissões

Em análise na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, projeto já foi aprovado na Comissão de Desenvolvimento Econômico, mas não consultou povos e comunidades tradicionais, principais afetados pela medida

Na última sexta-feira (17), às 9h, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara discutiu em audiência pública o Projeto de Lei nº 528/21, que pretende regulamentar o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), criando um Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). 

O Grupo Carta de Belém participou com a fala de Larissa Packer que abordou os pontos conflitantes com a Constituição Federal (CF) que o PL propõe e expôs a construção histórica que o grupo vem construindo ao longo destes últimos 10 anos sobre o tema. Em sua fala, Larissa conseguiu aprofundar as principais questões que o PL explora de forma superficial, destacando a possível inconstitucionalidade na inclusão de terras públicas e áreas já protegidas, por exemplo áreas de proteção permanente (APPs), no cálculo do mercado de carbono: “esse PL modifica o artigo 16, que é um dispositivo fundamental para construção de um possível mercado, da lei de concessão de florestas públicas. Ele modifica autorizando a emissão de créditos de carbono não só sobre florestas plantadas, mas sobre florestas naturais. Autorizando a concessão de créditos de carbono para empresas concessionárias de uma floresta pública, já indicando que a titularidade desses créditos poderia ser de uma companhia da concessão florestal. Aí precisamos lidar com a possível colisão desse dispositivo com o artigo 225 da Constituição Federal”, pontua.

Outro ponto importante que Larissa indica é que não há uma metodologia internacional, universalmente aceita, capaz de verificar a quantidade de créditos que realmente foi reduzida por um projeto e que garanta segurança jurídica para compra e venda do que é negociado. Ela aponta que o MRV (monitoramento, reportação e verificação, na sigla em inglês, que é um mecanismo para contabilizar as emissões de gases do efeito estufa) proposto pelo PL pode aprofundar o problema da segurança jurídica da determinação do objeto, podendo invalidar os contratos de emissão de crédito, ao estabelecer uma governança privada para o mercado. 

Ela explica que o Direito Civil determina que “‘a validade de um contrato de compra e venda, ou da concessão de direitos, depende da determinação clara de seu objeto”. “Senão, ficaria ao arbítrio daquele que tem mais poder econômico simplesmente mensurar a quantidade de unidades de redução e imputar o preço”. Ela ainda questiona os impactos para agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais:  “As comunidades tradicionais, os povos indígenas, aqueles que estão nas florestas, como vão arcar com os custos para contestar a quantidade de reduções a um preço fixado?”. Ela lembra, também, da importância de que as comunidades tradicionais sejam escutadas e participem deste processo.

Ela questiona ainda a quem pertence o carbono, se o projeto for autorizado. “Ele é do dono do projeto instalado, que vai reduzir as emissões? Ele é do dono do solo? Ou ele é do Estado? Essa é uma discussão que precisa ser aprofundada”. Ela usa ainda como exemplo a água que pertence à União e aos Estados, em que é necessária outorga para seu uso privado, assim como para extração mineral. 

Entre os demais participantes, pouco se falou, de fato, sobre a proposta do PL e suas implicações. A exposição de representantes de diferentes setores do governo, indústria e agronegócio pautaram a defesa de abertura deste mercado sob uma ótica financeira. 

Com uma criação e tramitação realizada a toque de caixa, o PL 528/21 já foi aprovado na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara e está na pauta para aprovação em regime de urgência. Entre discordâncias, o proponente do projeto, Marcelo Ramos (PL-AM), defendeu a aprovação antes mesmo da 26ª conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), que ocorre em novembro, sinalizando o apoio do presidente da Câmara dos Deputado, Arthur Lira, à pauta. 

Ele defendeu que o projeto propõe uma transição de cinco anos para adequação da proposta dentro de um mercado regulado. “Não tem nenhum sentido essa preocupação de nós aprovarmos uma legislação que não dialogue com as resoluções da COP”, afirmou em resposta ao posicionamento do representante do Ministério do Meio Ambiente, Marcelo Freire, que pediu cautela na tramitação, por receio de que haja divergências com o regramento do mercado internacional. 

Ramos ainda indicou que aprovada a proposta, haverá os próximos cinco anos para definir o regramento do mercado: “na COP nós chegaremos apenas com algumas definição de algumas regras para mercado regulado, principalmente que nesses cinco anos nós vamos ter inventário de emissões, nós vamos ter inventário de ativos florestais, nós vamos discutir os mecanismo de certificação que dialoguem com mercado já consolidados, nós vamos criar mecanismos de trava para que não haja duplicidade de compensação do mesmo ativo, seja ele florestal ou não”, defendeu.

PL articulado pelos interesses do Mercado

Antes mesmo da realização da audiência, Ramos já havia declarado à imprensa que o projeto é uma articulação dos setores empresariais: “Se buscou tentar chegar a um texto médio, que possa se identificar com o CEBDS, com a CNI (Confederação Nacional da Indústria), com a mineração, com o agro, e com a Anfavea (associação das montadoras), para que a gente tivesse um texto para debate”, afirmou em agosto ao Estado de Minas, sem que comunidades tradicionais e povos da floresta sejam consultados sobre a matéria que as afeta diretamente.

A informação foi confirmada por Natalia Renteria, Gerente de Clima e Finanças Climáticas do CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável). Segundo ela, o Projeto de Lei surge inspirado em uma proposta de Marco Regulatório do Mercado de Carbono Brasileiro lançada em agosto de 2021 pelo CEBDS em uma articulação do setor empresarial. Ela defendeu a emenda apresentada pelo deputado Zé Vitor (PL-MG) que permitiria a regulamentação equilibrada dos mercados regulado e voluntário de carbono, segundo ela. Ela explica que a proposta de sistema regulado se baseia nas emissões de indústria e energia, com foco em grandes fontes emissoras de carbono. Ela adiciona ainda que o mercado florestal e agropecuário não estariam englobados pelo projeto, “embora o setor agropecuário e florestal, em amplo sentido, sejam fonte de créditos para os setores regulados”. Ela explica ainda que a proposta é de que os créditos desses dois setores sejam considerados através do mercado voluntário, tendo por esse modelo o credenciamento, registro e contabilização de transações e compensações.

O projeto propõe, portanto, que estes créditos de carbono voluntários abasteçam outros mercados, ela cita como exemplo o mercado de créditos internacionais para aviação, Corsia (Compensação e Redução de Carbono para a Aviação Internacional). Além disso, há a proposta de abastecimento de uma parcela para o mercado regulado, tendo por base um limite de emissões destinado para empresas, ela explica: “as empresas vão receber aqueles créditos e vão poder poluir, digo vão poder emitir créditos dentro daquele limite”.

Oportunidade de investimento para os grandes, impactos para os pequenos

Do ponto de vista do agronegócio, o receio é com a criação de novas taxas que a regulamentação do setor possa gerar. Para Rodrigo Justus de Brito, consultor da área de meio ambiente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o texto ainda está muito aberto e alterações no texto devem ocorrer indicando quem será considerado dentro deste mercado regulado. Ele defendeu ainda que a casa aguarde a ocorrência da COP26 para votação, “para evitar retrabalho”, nas suas palavras, conforme sejam as definições a partir da Convenção para o tema. Por outro lado, o deputado Ramos, autor da proposta, indicou que a taxação ocorre por parte dos países que já implementam este mercado e defendeu uma taxação nacional, ao invés do pagamento por uma tarifa internacional.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI), que fez parte da articulação de construção do texto, representada por Davi Bomtempo, também apresentou receio de pagamento tarifário, em concordância com a CNA. Bomtempo defendeu em sua apresentação a ampliação do uso econômico e sustentável da biodiversidade e dos recursos florestais. O que também pode ser chamado de financeirização da natureza. Bomtempo falou sobre a criação e ampliação de um mercado de carbono para diversas áreas, como conservação e restauração florestal, projetos de eficiência energética e resíduos. 

Ele indicou ainda que a CNI vê o gás carbônico como “nova commodity mundial” e, portanto, passível de interesse de investimentos. Vale ressaltar que a CNI defende a agenda do Mercado para conservação florestal sob uma ótica econômica, com a defesa de políticas como o “pagamento de serviços ambientais, bioeconomia, concessões florestais e trabalhar o entendimento de alguns temas mais sensíveis como o licenciamento e a regularização fundiária”, conforme indicou Bomtempo.

Larissa ainda fez uma importante ressalva em sua fala final, de que as florestas não são intocadas, há povos e comunidades tradicionais que nelas vivem secularmente. “Esses 59% do território nacional, esses 500 milhões de hectares de florestas, tem gente ali dentro, que há muitos anos tem tecnologia, técnicas, conhecimentos tradicionais associados ao manejo dessas florestas em pé”.

Ela ainda observa que os principais fornecedores de um possível mercado de carbono estão nos pequenos produtores, agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, residentes em áreas públicas, onde a terra é mais barata e, portanto, os valores dos créditos seriam mais competitivos. Uma vez que para valer a pena para empresas poluidoras o custo da compensação tem de ser mais baixo do que o valor de uma multa ou mesmo da transição do próprio modelo de produção poluidor. “Esses créditos vem com condicionantes”, ela lembra. “Então se houve focos de incêndio, desmatamento, extração ilegal de madeira nessas áreas, esses povos e comunidades, esses pequenos agricultores que são os fornecedores mais baratos desses créditos serão responsabilizados por isso”. O que faria com que essas populações, com modos de vida diferenciados, sejam alçadas a fornecedores de serviços ambientais “vigiando territórios para emissão de créditos de carbono para essas empresas poluidoras em âmbito nacional e para as empresas e países do norte global”, esclarece.

Ela alerta, também, que grande parte dos valores que iriam para esses pequenos produtores, na verdade ficarão com as empresas de consultoria que vão fazer o MRV, pois a definição para entrega do serviço ecossistêmico requer um padrão tecnológico complexo para realizar o monitoramento, registro e verificação que encarece o processo. “Então, quem mais ganha não são os fornecedores que estão nos territórios”, explica. Por esses motivos, ela reforça a importância da participação de representantes dos povos indígenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores que estejam presentes e possam ser ouvidos.

Confira a transcrição da fala de Larissa Packer, representante do Grupo Carta de Belém e advogada socioambiental da Grain:

É importante delimitar o escopo da regulamentação desse projeto de lei do mercado sobre a redução de unidades de redução de emissões de gases de efeito estufa. Para quem está em casa, é uma estrutura de financiamento de onde viria o dinheiro para financiar as ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Para isso se autoriza a emissão de créditos de carbono sobre projetos que comprovadamente reduzam as emissões frente a uma linha de referência se não houvesse nenhum projeto adicional para a sua redução. 

Esse PL além de trazer a definição de o que é” ativo ambienta”l, “crédito de carbono”, autorizar a emissão desses créditos a partir destes projetos validados como capazes de reduzir os gases de efeito estufa, esse PL dá 5 anos para a construção desse mercado regulado de offsets. Ou seja além de autorizar a emissão dos créditos, também autoriza aqueles que não puderam, ou não quiseram cumprir as suas metas por um cálculo econômico — já que comprar créditos para compensar as metas ficaria muito mais barato do que realmente adotar medidas de modificação da atividade econômica para uma transição para uma economia de baixo carbono. Aqueles que não puderam ou não quiseram reduzir suas emissões podem comprar créditos em outras partes do território doméstico, ou em âmbito global. Como é uma iniciativa muito mais barata, a construção de mercado de compra e venda de créditos para compensar as emissões daqueles que não puderam ou não quiseram cumprir com a limitação de sua atividade industrial, é uma iniciativa muito conhecida e muito discutida há muitos anos e, portanto, cheia de polêmicas. Tanto com relação  à eficácia da real redução das emissões e quanto em relação aos problemas de estrutura na construção de mercados para transacionar ativos ambientais. 

Do ponto de vista da eficácia é importante a gente indicar as diversas críticas levantadas de que esses mercados acabam por retardar as efetivas adoções de medidas para alterar o modo de produção e consumo, que seriam essenciais para diminuir a escala e a intensidade da degradação e da poluição das emissões. 

O programa de créditos de chumbo no EUA é de 1984. Então, ao mesmo tempo que uma lei estabeleceu limites para o chumbo na gasolina nos EUA lá em 1984, tambémautorizou que as empresas continuem tendo taxas de chumbo, se comprarem permissões ou créditos no mercado norte americano. Isso levou 22 anos ainda com a presença de chumbo na gasolina depois da instalação. Retardou em muito a eliminação de chumbo na gasolina. Isso também, nos anos 90, aconteceu com o dióxido de enxofre no programa de chuva ácida nos EUA. Nestesse modelo, — que inclusive foi indicado pelo representante da CNI —, “limites e comércio” (Cap and Trade no termo em inglês), se estabelece limites para emissões, mas se autoriza que o mercado cumpra parte dessas metas e compense essas metas.

Esse modelo foi exportado para o ambiente internacional, através do protocolo de Kyoto pelos EUA, que embora não tenha assinado, foi o grande modelo que serviu para o protocolo de Kyoto principalmente no mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) e que, de certa forma, acaba por balançar o critério das responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Exatamente porque autorizou o país de primeira industrialização (os países do anexo I) a compensar parte de suas metas no território de outros países, gerando então um mercado de compensação a nível internacional. Isso gera uma determinada transferência de responsabilidades com relação às emissões para os países em desenvolvimento do sul global. E torna muito mais barato e retardou a adoção de medidas eficazes por parte dos países industrializados do norte global. 

Outro ponto de vista seria o desestímulo à intervenção estatal, via orçamento público, governança pública, e fortalecimento dos órgãos de comando e controle, já que esses mercados acabam, ao invés de complementar, acabam relaxando as medidas e delegando a gestão ambiental para o ambiente do mercado financeiro. A proteção ambiental acaba sendo delegada para o custo de oportunidade a depender do preço do ativo exercido.. Isso leva ao que nós chegamos hoje, a ineficácia do mercado e ao aumento de emissões já que o preço não é interessante frente ao preço de outras commodities, como as minerais e agrícolas. Já os ativos ambientais que pretendem ser  commodities, mas não chegam a ser commodities, já que ela se relaciona a um produto de existência física, que possa ser regido por um padrão internacional como o café, a soja. As unidades de carbono não tem uma existência física, ela é intangível, então não poderia ser regulado como uma commodity, como a CNI aponta.

O problema é justamente: a gestão ambiental e climática pelo mercado financeiro acaba gerando uma indução de mais emissão e degradação. Nesses mercados sobre ativos ambientais o preço oscila de acordo com a escassez dos bens ambientais que esses ativos representam. Quanto mais a economia marrom lucra, mais os ativos ambientais escassos acabam se valorizando no mercado financeiro. É um mercado que já nasce financeirizado. Se especula muito com a crise ambiental. Quanto mais incêndios no Brasil, ou na Califórnia, mais os títulos se valorizam. Então, é uma engenharia de custo de oportunidade e de delegação para o mercado financeiro, que tem riscos de não ser eficaz para a política ambiental.

Agora, do ponto de vista dos problemas estruturais sobre um mercado sobre bens ambientais, aí esse PL tem de enfrentar a possível inconstitucionalidade da geração de créditos de carbono a partir de bases naturais. Tanto no Brasil, como em outros países em desenvolvimento, o principal setor que pode ofertar créditos de carbono é justamente o setor de usos do solo, setor florestal e agropecuário. Portanto a possibilidade de emitir crédito sobre florestas é algo que precisa ser muito bem debatido. Não por outro motivo, esse PL modifica o artigo 16, que é um dispositivo fundamental para construção de um possível mercado, da lei de concessão de florestas públicas.

Ele modifica autorizando a emissão de créditos de carbono não só sobre florestas plantadas, mas sobre florestas naturais. Autorizando a concessão de créditos de carbono para empresas concessionárias de uma floresta pública, já indicando que a titularidade desses créditos poderia ser de uma companhia da concessão florestal. Aí precisamos lidar com a possível colisão desse dispositivo com o artigo 225 da Constituição Federal. Não só a nossa Constituição Federal, como as constituições democráticas de todos os países erguidos pós guerra, tutelam o meio ambiente e a integridade ambiental como um direito humano fundamental vinculado à qualidade de vida. 

Portanto, o meio ambiente, a integridade e a qualidade ambiental compõem o mínimo existencial de toda e qualquer pessoa humana. O mínimo existencial ecológico. O acesso à água, ao ar puro, ao equilíbrio hídrico, a fertilidade dos solos, sem isso, não se viabiliza as possibilidades de vida humana e do planeta. Portanto, é um direito humano fundamental.  A natureza desse direito humano, a titularidade desse bem constitucional, a vegetação nativa, as funções ecossistêmicas, a titularidade é difusa, ela pertence a ninguém, ela pertence a todos das presentes e futuras gerações. Portanto, essas funções ecossistêmicas não podem ser apropriadas por um só sujeito de direito e alienadas no comércio como qualquer outra mercadoria. Então, a possibilidade de emitir créditos de carbono sobre função ecossistêmica de sequestro de carbono, que é o principal mercado de oferta de créditos no Brasil, pode entrar em rota de colisão com o artigo 225 da CF. 

Uma lei que autorize a livre disposição e circulação de um bem ambiental, através de um crédito de carbono pode ser flagrantemente inconstitucional, fazendo uma transição jurídica do regime jurídico dos bens comuns, do direito fundamental de natureza difusa, para o direito civil proprietário. E não é assim que a legislação brasileira constitucional trata essa matéria. 

Então de quem é o carbono, se o carbono for autorizado? Ele é do dono do projeto instalado, que vai reduzir as emissões. Ele é do dono do solo. Ou ele é do Estado. Essa é uma discussão que precisa ser aprofundada. A água, por exemplo, é um bem da União e dos Estados, não é nem dos municípios, nem do particular. Para o acesso privado à água é necessário a outorga, é necessário um procedimento especial de outorga da água. Os minérios não são do dono do solo. Os minérios que estão no subsolo são da União e a capacidade de exploração passa pelo licenciamento, passa pela lavra. A mesma coisa no setor de créditos de carbono, a gente só tem a definição de quem é a titularidade no setor energético. 

O Decreto nº 5882/06 coloca que para validação, emissão e comercialização de créditos a titularidade é da Eletrobrás, não do produtor autônomo de energia alternativa. No caso dos créditos que vem das florestas, das bases naturais, existem dois projetos de lei, o PL 195/11 e o PL 212/11, que tramitam na Câmara e no Senado, que aponta a titularidade dos créditos que vem do setor de florestas, não em créditos, ele titula em ‘unidades de redução de emissões’. Uma unidade que representa 1 ton de carbono equivalente evitado, é titularizada pela União, que compartilharia e distribuiria essas unidades para os outros entes da federação que tem projetos de reduções de emissões e uma parte dessas unidades poderia ser conversível em créditos. Mesmo porque se você autorizar um crédito para integrar o mercado sobre todas florestas naturais ou plantadas, você acaba com a possibilidade do mercado ser uma estrutura de financiamento. Você amplia tanto a oferta de créditos no mercado que coloca o preço lá embaixo e acaba com a estrutura de financiamento. Uma coisa que o PL quer fazer e que simplesmente acabaria com a possibilidade de um mercado financiar. 

Exatamente por isso, a posição histórica do Itamaraty vem sendo por não inserir as florestas naturais no mercado de carbono global e também contra a possibilidade de gerar compensações pela compra desses créditos, exatamente por ferir o critério das responsabilidades comuns, porém diferenciadas entre os países. Também a questão da soberania nacional e várias questões em relação a especulação do preço da terra e dos ativos ambientais que poderia gerar pressões e conflitos territoriais nos países fornecedores desse tipo de serviço de sequestro a partir de bases naturais.

Se for superada essa inconstitucionalidade, em que o crédito de carbono não titularizaria um bem que não pertence a ninguém, um bem constitucional de natureza difusa. Se ele for um bem móvel, capaz de ser circulado como qualquer outra mercadoria. Esse PL precisa garantir que o objeto da compra e venda desses créditos no mercado seja determinado e tenha segurança jurídica. Nós sabemos, assim como a Convenção da Diversidade Biológica e Convenção do Clima apontam, que a verificação das emissões realmente evitadas, principalmente no setor dos usos do solo e das florestas, é muito difícil. Não existe uma metodologia internacional, universalmente aceita, para você verificar a quantidade de créditos que realmente foi reduzida por um projeto e garantir a segurança jurídica para compra e venda e daquilo que está realmente sendo negociado.

O mercado para funcionar precisa determinar claramente seu objeto. É por isso que o Direito Civil coloca que ‘a validade de um contrato de compra e venda, ou da concessão de direitos, depende da determinação clara do objeto (art. 104, II CC/02)’, da quantidade, da qualidade para fixação de um preço justo. Senão, ficaria ao arbítrio daquele que tem mais poder econômico simplesmente mensurar a quantidade de unidades de redução e imputar o preço, o que também gera nulidade do negócio (art. 489 do CC/22). As comunidades tradicionais, os povos indígenas, aqueles que estão nas florestas, manejando as florestas, como vão arcar com os custos para contestar a quantidade de reduções a um preço fixado? 

Por isso, na Convenção do Clima e na Convenção sobre Diversidade Biológica é apontada a necessidade de aprofundar salvaguardas sobre o MRV, o monitoramento, a verificação e a reportação, principalmente sobre as bases florestais, porque a redução depende muito do tipo e estágio da vegetação. Um projeto pode ser instalado em um lugar e haver “vazamento”, ou seja, deslocamento das emissões para outro lugar onde não há um projeto instalado e aí não vai haver efetiva redução. 

A questão da dupla contagem: se não for um mercado regulado em âmbito nacional, se for um mercado voluntário – a partir de projetos –  como a CNA apontou, fica muito difícil de evitar a dupla contagem, ou seja, um projeto pode ser computado mais de uma vez e aí você perde completamente a segurança jurídica e a robustez de um mercado. 

A mesma coisa com relação apermanência. Uma área que sequestrou carbono por alguma dessas tecnologias de redução de emissões no solo, na vegetação, um desmatamento, um incêndio ou qualquer coisa pode gerar nova emissão, pode voltar. Ou seja, uma remoção de carbono não significa redução no inventário. Então, a permanência é outra questão. 

Sobre a questão da adicionalidade: o projeto deve ser adicional. A reserva legal e APP — ao contrário do que o Código Florestal determina — não podem incorporar uma base para emissão de créditos de carbono porque ele já é pré-existente, não está reduzindo nada. Então, você perde a robustez. Não são adicionais. No âmbito internacional, se a legislação e o mercado brasileiro autorizarem isso, ele perde totalmente a segurança jurídica e a robustez do mercado, contrariando o livro de regras internacionais.

Por fim, esse PL ao invés de melhorar esse MRV ele aprofunda o problema da segurança jurídica da determinação do objeto, podendo tornar inválidos os contratos de emissão de crédito. Porque ele estabelece uma governança completamente privada. As regras seriam definidas pela ABNT. A ABNT é uma associação privada, embora tenha as suas normas e seus critérios respeitados. Os critérios têm de ser definidos por uma governança pública e um sistema robusto, como já foi citado também pelo MCT. Esse sistema nacional de registro de inventários que está sendo criado pelo PL vai ser administrado por um instituto privado, que teria poder de regulação e fiscalização de uma agência reguladora, só que a sua qualificação é de pessoa privada e não de autarquia especial como a de uma agência reguladora.ntão nós não temos robustez alguma. 

Para concluir a minha fala, nós temos que colocar também que um mercado que tem as florestas e as terras como base para emissão dos créditos coloca milhões de hectares submetidos a prestação de serviços ambientais de sequestro de carbono para compensação de metas de países do norte global que deveriam estar tomando medidas eficazes nas suas indústrias. Então, realmente isso compromete e pode disputar a quantidade de terras com a produção de alimentos, não para a produção de commodities como a soja, mas para a produção de alimentos mesmo para a população brasileira. Pode comprometer outras atividades no Brasil e, principalmente, o acesso e o direito à terra e ao território aos povos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais. Então, primeiro deve-se realizar a reforma agrária, realizar a titulação dos territórios coletivos dos povos tradicionais e povos indígenas para depois se resolver se essas terras vão estar submetidas a prestação de um serviço internacional a outros países. 

Veja a audiência na íntegra: