O coelho de Alice e a política de clima no Brasil

“A falta de uma política climática de fato ampla e audaciosa no Brasil, inclusive para o setor de transportes, pode nos fazer perder a chance de liderar o processo de redução de emissões no mundo e de melhorar a vida da população no país. Podemos continuar brincando com os números – reapresentando dados de redução do desmatamento do ano passado, como aconteceu no Dia Mundial do Meio Ambiente, e escondendo tendências -, mas não iremos alcançar o objetivo final deste debate: evitar os efeitos perigosos do aquecimento global. Essa questão é urgente”, escrevem Renata Camargo, coordenadora de políticas públicas do Greenpeace e Renata Nitta, coordenadora da campanha de clima e energia do Greenpeace, em artigo publicado no jornal Valor, 15-07-2013.

Eis o artigo.

Se o Coelho Branco de “Alice no País das Maravilhas” pudesse se manifestar em relação à Política Nacional sobre Mudanças do Clima, ele certamente diria: “Estou atrasado, oh, como estou atrasado”. Tão celebrado pelo governo no Dia Mundial do Meio Ambiente, os resultados preliminares dessa política apontam para um estado de miopia: avançamos no combate ao desmatamento, mas demos passos para trás no que diz respeito à redução de emissão em outros setores da economia, como transportes, o que coloca em risco todo o conjunto.

Um dado de extrema relevância passou sem alarde: as emissões do setor de energia aumentaram 21,5% entre 2005 e 2010: a fatia passou de 16% das emissões totais do Brasil para 32%. Foi o setor que mais cresceu no período e o que tende a continuar aumentando, uma vez que políticas ousadas de eficiência energética estão fora das prioridades do governo e combustíveis fósseis continuam a ter a parcela mais gorda dos investimentos no setor de energia.

O setor de transportes, computado no filão de energia, ganhou destaque. Em 2005, de acordo com o Inventário Nacional de Emissões, o setor respondia por 8% do total de emissões de gases de efeito estufa no país. Nos últimos anos, esse percentual vem dobrando. E, no escopo das emissões do setor de energia, já responde pela maior parte das emissões: 48,23% (em 2011). Segundo o Plano Decenal de Energia 2021, lançado em janeiro, o país emitiu 191 milhões de toneladas de CO2 equivalente por queima de combustíveis fósseis com transporte em 2011, um crescimento de 4,5 pontos percentuais em relação a 2010.

Enquanto isso, o Plano Setorial de Transporte e Mobilidade Urbana, que faz parte da Política Nacional sobre Mudanças do Clima e que deveria guiar o setor rumo a uma economia de baixa emissão, foi lançado em junho, com atraso de quase um ano. A demora não significou consistência nem ambição: ele não aponta metas claras nem ações factíveis de mitigação.

Os números são claros sobre a direção que o Brasil precisa seguir: em média, os carros respondem por 30% do deslocamento nas cidades, mas representavam 39% das emissões nacionais de CO2 equivalente do setor de transportes em 2005. Já os ônibus respondem por mais de 60% dos deslocamentos nas cidades e contribuem com 7% das emissões. Precisamos aumentar a quantidade e a qualidade do transporte público, e de políticas de eficiência para os veículos individuais.

Mas o plano setorial passa longe disso. No que tange à mobilidade urbana – tema que está no coração das manifestações atuais no país -, o plano foi estruturado sob um telhado de vidro: a redução de emissão prevista é calculada a partir da construção de obras do PAC Mobilidade Urbana (para grandes e médias cidades) e dos projetos de infraestrutura da Copa do Mundo. Essas obras não só vêm sendo questionadas pela população como muitas não saíram do papel (das 50 obras previstas, pelo menos 13 já foram canceladas). Essas iniciativas tampouco foram alinhadas com as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Muitas obras dos PACs não estão inseridas em um planejamento a médio e longo prazo ou devidamente inseridas na estrutura urbana.

Quanto a incentivos que promovam a redução das emissões e diminuam o consumo de combustíveis fósseis como a gasolina, não há nada consistente. Ou seja: se por um lado há incentivos para a compra de carros no país com as constantes reduções de IPI, por outro há um plano setorial que não prevê nenhuma política de eficiência energética veicular. Apenas para citar um exemplo de quão eficaz poderia ser essa medida, nos Estados Unidos, estima-se que as metas de eficiência para veículos leves e pesados podem economizar o equivalente a 12 bilhões de barris de petróleo até 2025 (quantidade de óleo equivalente ao que se pretende retirar de um dos maiores campos do pré-sal, o Libra).

O Brasil passa pelo maior ciclo de investimentos no transporte público desde a década de 1980, mas de nada adianta recursos se esses não têm destinação adequada. Sem clareza de objetivos, a efetiva mudança do transporte individual para o transporte coletivo de qualidade e do motorizado para o não motorizado não vai acontecer, nem a necessária criação de políticas que garantam veículos energeticamente mais eficientes.

Como colocou a secretária-executiva da Organização das Nações Unidas para o Clima, Christiana Figueres, em recente audiência pública na Câmara dos Deputados, “as mudanças climáticas fazem piorar as condições econômicas e sociais da grande maioria das pessoas, especialmente as mais pobres. Se não considerarmos as mudanças climáticas, o desassossego das ruas vai se amplificar para pior. Especialmente quanto ao transporte, que é o setor responsável por um terço das emissões do mundo. Isso precisa mudar”.

A falta de uma política climática de fato ampla e audaciosa no Brasil, inclusive para o setor de transportes, pode nos fazer perder a chance de liderar o processo de redução de emissões no mundo e de melhorar a vida da população no país. Podemos continuar brincando com os números -reapresentando dados de redução do desmatamento do ano passado, como aconteceu no Dia Mundial do Meio Ambiente, e escondendo tendências -, mas não iremos alcançar o objetivo final deste debate: evitar os efeitos perigosos do aquecimento global. Essa questão é urgente.

Está claro que a Política Nacional sobre Mudanças do Clima, se não trabalhada em todos os setores e inserida nas discussões em curso, está fadada a ser letra morta. Ampliá-la, implementá-la e permitir à sociedade que a acompanhe de forma transparente são passos fundamentais. Se não seguirmos esse caminho, seremos sempre o Coelho Branco de Alice, que, mesmo apressado, nunca chega a tempo.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos