Agro Digital: grilagem e financeirização da cadeia agroalimentar

Disputa fundiária nos sistemas agrodigitais e exclusão dos sujeitos da produção de alimentos

No terceiro episódio da série de lives “Diálogos Inconvenientes”, o Grupo Carta de Belém se aprofunda no tema “Agrodigital: Grilagem e financeirização da cadeia agroalimentar”. O debate foi mediado por Sergio Amadeu da Silveira, da Universidade Federal do ABC e membro do Podcast Tecnopolítica, e contou com a presença de Larissa Packer, advogada Socioambiental, membra da GRAIN e do Grupo Carta de Belém, e Perla Alvarez Britez, da Coordenação Nacional de Organização e Mulheres Trabalhadoras, Rurais e Indígenas (CONAMURI) e militante da Via Campesina Paraguay.

“Cada vez mais a tecnologia digital está presente no nosso dia a dia. Alterando desde as formas mais comuns de relacionamento cotidiano em redes de relacionamento online, às formas de organização do trabalho, a uberização do trabalho, até o modo de produção robotizado das indústrias e as transformações financeiras por meio de dinheiro digital e de plataformas digitais”, traz Sérgio Amadeu na abertura da edição. A partir do século 21, em grande parte dos setores da economia, a coleta e processamento de dados massivos tornou-se usual, de forma que configuram o modelo de negócio mais lucrativo da era digital. Tal proposição provoca, portanto, “uma reorganização nas cadeias de valor do já ultra concentrado mercado das corporações de tecnologia, as chamadas BigTechs”. Tais empresas vêm marcando presença tanto na digitalização de informações sobre a terra, quanto sobre as etapas da cadeia industrial alimentar da produção no campo até chegar à mesa dos consumidores.

Segundo Larissa Packer, a digitalização da vida está intrinsecamente relacionada à crescente financeirização da economia. A principal estratégia frente a crise econômica está na chamada “financeirização dos sem bancos”. De um total de 1.7 bilhões de pessoas sem banco no mundo, 1,1 bilhão de pessoas têm acesso a telefones celulares. Isto significa que com celular e conectividade se permite ampliação em escala da economia financeirizada por meio de pagamentos e transações via plataformas digitais de pagamentos,  sem ter de abrir conta em banco. “Os sem banco e os sem internet muitas vezes estão exatamente no âmbito rural, o que coloca muitos desafios, mas também uma oportunidade grande de mercados para a agricultura digital, e parcerias entre as “BigAg”, as grandes da agricultura, e as “BigTech”, as grandes da tecnologia”. Larissa cita ainda o estudo “Conectividade Rural na América Latina e no Caribe – Uma Ponte para o Desenvolvimento Sustentável em Tempos de Pandemia ” do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Microsoft, o qual indica que 77 milhões de pessoas não têm acesso à internet de qualidade nas zonas rurais, o que é visto como uma oportunidade de expansão da digitalização da economia e financeirização na região. Ela indica ainda que no Brasil 60 milhões de pessoas não têm banco, 71% dos estabelecimentos rurais não têm acesso à internet, sendo que daqueles que têm cerca de 80% é via celular. A pandemia acelera em muito a transformação digital e financeira na região. Em 2020 houve um aumento de 50% do número de transações pela internet na América Latina, com crescimento de 500% do  faturamento mensal (de U$ 19 milhões para 120 milhões/mes) no comercio digital (e-commerce)  Assim novas transações passam pela financeirização sem necessariamente passar pelos bancos, através das moedas digitais e das plataformas digitais de pagamentos, como como pix, picpay, paypal, e agora também o whatsapp. “São serviços das chamadas fintechs, e aí você tem uma possível reestruturação da cadeia, com o mergulho dessas grandes da tecnologia, ofertando serviços de, telefonia, acesso à internet e serviços financeiros para vários setores da economia, principalmente na agricultura, onde tem a maior fatia dos “sem banco”. 

Perla Britez destaca a apropriação comercial de conhecimentos públicos que interessam à toda humanidade. “Cada vez há maior apropriação sobre o que toda a humanidade, particularmente no campo, tem desenvolvido conhecimento para benefícios de toda humanidade e que agora as empresas estão se apropriando”. Ela agrega a discussão a importância de olharmos para as tecnologias desenvolvidas geração após geração pelos povos campesinos como no melhoramento de sementes e conhecimentos sobre agricultura. Nesse sentido ela aborda o apagamento das populações tradicionais e campesinas, produtoras de alimentos e não de commodities, deste processo de avanço tecnológico e questiona: “Quem controla? Quem é beneficiado? E a partir daí entrar na disputa. Para seguir construindo conhecimento coletivo, distribuindo esse conhecimento coletivo distribuído, não para si mesmo, mas para as gerações futuras”. Ela ainda posiciona que as articulações do campo, como a Via Campesina, não se colocam contrários a tecnologia digital, mas tenciona sobre a falta de participação popular. “É preciso dizer, nós não nos negamos à tecnologia digital e ao desenvolvimento deste tipo de tecnologia, mas qual a participação temos. É como se aqueles que não são citados, não existem. As mulheres ensinam muito em sua luta à humanidade: aquilo que não se nomeia não existe. São temas sobre os quais ainda estamos muito longe de compreender e não apenas compreender, mas saber o que queremos nós em termos de bem-estar, ou não?”, reflete.

Disputa fundiária digital

Packer explica que em muitos países nas zonas de expansão do agronegócio na América Latina e naqueles denominados como “megadiversos”, está acontecendo uma digitalização da governança da terra, ou seja, cadastros digitais que incluem informações sobre onde está a terra, o tamanho dessa terra e também informações sobre os recursos naturais, ligadas a um CPF ou a um CNPJ. “Esses cadastros passam a ser excludentes, porque quem tem acesso a recursos para pagar empresas para fazer esse georeferenciamento da terra e dos recursos, sai primeiro”. Assim, povos e comunidades tradicionais que não têm esse acesso perdem com isso, além do fato de que o Banco Mundial: “com os recursos do clima e o financiamento contra a crise climática, vem financiando o cadastro individual de médias e pequenas propriedades em detrimento do cadastro de territórios coletivos”. Esses cadastros são auto declaratórios, sem a exigência de documentos de posse e propriedade destas terras, o que potencializa o uso fraudulento dos cadastros digitais e da grilagem de terras. “O proprietário inscreve essas informações sem a verificação do Estado sobre essa declaração. Aqui no Brasil, tem estados que falam que demoraria 100 anos pro governo verificar se as informações declaradas pela pessoa no cadastro digital sobre o tamanho da área ou sobre a localização é falsa ou não”.  

Larissa destaca que o Estado não tem um tempo ou capacidade para verificar as informações, além de que tanto a não exigência de documento de posse e propriedade, quanto a não verificação do registro em cartório são caminhos para a tomada fraudulenta de terras. A digitalização de documentos pode inclusive legalizar a grilagem de terras, validar  documentos falsificados nos cartórios, o grilo para dar uma cara de antigo a documentos falsos. Dessa forma, os cadastros digitais vem para passar uma régua indicando: “olha, o processo no Brasil começa com a digitalização, essa propriedade está digitalizada, o contrato da produção está digitalizado, então a gente vai dar um positivo para a produção dessa área, pretende criar territórios virtuais regularizados do ponto de vista fundiário e ambiental, independentemente o de um processo histórico de diversas violações ligadas à área’. Assim, a digitalização da  terra vem para promover o processo de regularização de mercado: ser menos burocrática, menos cartório, menos Estado, mais governança pelas corporações. Há inúmeros casos de sobreposição de cadastro sobre territórios coletivos e terras públicas como Terras Indígenas, Quilombolas e Unidades de Conservação. Larissa destaca ainda um número apavorante: cruzamento de dados públicos apontam que 41% do território brasileiro seria de propriedades particulares, porém “está inscrito no Cadastro Ambiental Rural (CAR) Digital 76% do território brasileiro como imóvel particular, então há uma disputa fundiária digital entre o que é o Brasil público e o Brasil privado, os territórios coletivos e a propriedade privada”. Ela destaca ainda que as terras públicas e coletivas (CDRU coletivo) não podem ser utilizadas como garantia de dívida para acesso a financiamento, ao contrário das áreas privadas. Logo, os cadastros digitais estão sendo incentivados pelo Banco Mundial no processo de regularização fundiária, sem identificar se há grilagem de territórios coletivos ou se há violações de direitos envolvidas nessa cadeia, a fim de inserir milhões de hectares como estoque de terras públicas baratas como propriedade privada e no mercado financeiro como garantia de dívida

Benefícios para quem?

Perla Britez explica que “estamos falando de robotização na produção, de georreferenciamento. Estamos falando de como a mercantilização de todos os bens naturais está acontecendo através das plataformas digitais. Não é necessário que um empresário esteja no território, mas com um drone ele pode controlar a produção em determinado território estando em outra parte do mundo”. Dessa forma, ela destaca que os governos apresentam uma proposta de produtividade e de resolver os problemas de fome no mundo com a digitalização da agricultura. Porém, “de que soluções estamos falando se nós que produzimos a terra, que estamos colocando a semente na terra, a cuidamos para que possa gerar frutos e alimentos para a humanidade, não temos acesso e infraestrutura a essa tecnologia?”. 

Poucas mãos endinheiradas passam a controlar cada vez mais os territórios e a produção gerada pela agricultura, de modo que: “empresas multinacionais vem destruindo nossa natureza, nosso território, água, florestas, diversos tipos de ecossistemas. A diversidade que temos está sendo destruída para acumular, fazer uso das tecnologias digitais para acelerar processos. Nós perdemos o controle sobre nosso tempo. O tempo que tínhamos para observar, para melhorar nossas sementes”. Ela ainda destaca a perspectiva popular que trata dos interesses coletivos e não em um âmbito individualista com finalidade no lucro: “Não é como se nós não tivéssemos tecnologias, os indígenas e camponeses desenvolvemos tecnologia, mas nossa tecnologia volta a ser de uso comunitário e uso de toda a humanidade. Não há propriedade  privada sobre essa tecnologia, como aquelas tecnologias digitais que são de propriedade privada, em que é preciso pagar o acesso”.

Ela destaca que além da fragilidade de não haver controle popular sobre o uso destas tecnologias, as informações ainda são apropriadas pelas empresas e os conhecimentos tradicionais comercializados a partir da utilização de inteligência para roubo destes conhecimentos e dos recursos naturais: “estão tomando informações e estão entregando conhecimentos que são nossos, que não são para nosso benefício, são para benefício das empresas multinacionais”. Nesse sentido ela questiona ainda a exclusão das populações que justamente são atores principais na produção de alimentos: “quem controla a tecnologia aplicada à agricultura? Quem a desenvolve e para quem? A quem beneficia essas tecnologias colocadas com a irrigação e pulverização de precisão, calorimetria e um monte de palavras que têm relação com o uso da tecnologia na agricultura, mas sem nenhum tipo de participação de nós que somos sujeitos da produção de alimentos”.

Perla fala ainda das contradições deste sistema de avanço da digitalização baseado na ampliação da produção em escala global que geram commodities, ao invés da promessa de acabar com a fome, ela usa seu país, o Paraguai, como exemplo ao lembrar que o Estado apresenta uma narrativa de destaque para a produção de soja: “somos um país de 7 milhões de pessoas e produzimos alimentos para 70 milhões de habitantes, falando da soja, por exemplo. Mas não somos consumidores de soja, culturalmente nunca consumimos soja e ainda hoje não a consumimos. Ou seja, de que alimento para alimentar a humanidade estamos falando?”, ela questiona. Nesse sentido, avança: usam os tratores mecanizados, inclusive sem condutores, pulverizam veneno com aviões sem piloto, nesse sentido que benefício traz para nós em microescala? A rede agroecológica que temos em Assunção que a duras penas estamos construindo se forma por grupos de whatsapp de 20, 50 pessoas e por aí vamos difundindo nas redes contribui minimamente, mas não resolve os grandes problemas sociais como a fome, a desigualdade, a pobreza, a violência contra as mulheres e os territórios”. 

Nesse sentido, Larissa indica ainda que a digitalização, privatização e financeirização estão atreladas, tanto na agricultura, quanto em outras escalas de valor. “Se a gente não conseguir a partir de agora começar a pulverizar a possibilidade de nos conectarmos tanto fora da internet, presencialmente por pequenas redes, quanto pela internet, mas através de estruturas que a gente tenha mais autonomia, nós vamos todos os dias estar financiando a nossa própria morte como sujeitos autônomos”. Em diálogo, Perla destaca como desafio para avançarmos na capacitação tecnológica e capacitação política frente a disputa de poderes colocada em jogo, e questiona que sabendo que estamos inseridos neste mundo digital, vamos aceitar o que está posto ou iremos romper e transformá-lo?

Veja a live na íntegra: