Bioeconomia: comércio da biodiversidade e roubo dos conhecimentos tradicionais

O futuro da natureza e dos conhecimento de nossos ancestrais

No segundo episódio da série de lives “Diálogos Inconvenientes”, o Grupo Carta de Belém traz a edição “Bioeconomia: Comércio da biodiversidade e o roubo dos conhecimentos tradicionais”. O debate foi mediado por Gabriel Fernandes, da CTA-Zona da Mata e GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Lourdes Laureano, da Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado/Rede de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs)/GT Bio ANA, Marcela Vecchione do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) -UFPA e Grupo Carta de Belém, e Cláudia de Pinho, da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais. 

“A bioeconomia tem por base o uso intensivo de novos conhecimentos científicos e tecnológicos, como os produzidos pela biotecnologia, genômica, biologia sintética, bioinformática e engenharia genética, que contribuem para o desenvolvimento de processos com base biológica e para a transformação de recursos naturais em bens de serviço”, Gabriel Fernandes trouxe essa definição da EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) para abrir a sessão, assim levando o público a refletir sobre a porcentagem de veracidade da definição apresentada pela empresa. Ele mesmo questiona o posicionamento e traz: “A realidade que a gente vê é que os povos e as comunidades tradicionais estão pressionados por dois lados diferentes. De um lado, essa pressão que vem de um Brasil secular, um Brasil forjado a ferro e fogo, que é o desmatamento, as queimadas, as monoculturas, a mineração do garimpo, os conflitos por terra. Do outro lado, exatamente esse conjunto de novas promessas tecnológicas que fazem parte do que entendemos por economia verde”. 

Marcela Vecchione abre o debate ao colocar o fato de que a bioeconomia, na verdade, “nada mais é do que garantir acessos a territórios e a espaços onde antes não se tinha esses acessos, de maneira a agregar valor a  produções já existentes ou a produções as quais se pretende chegar, do ponto de vista da inovação, e ganhando acesso a mercados”. Ela destaca que tal proposição tira os sujeitos territoriais de cena, justamente por o território não ser classificado como uma preocupação desta política. Um dos grandes objetivos da bioeconomia, portanto, é a larga escala de produção e a apropriação dos conhecimentos tradicionais e ancestrais dos povos. Ela destaca que do ponto de vista das ameaças, políticas nacionais têm sido desenhadas para colocar o Brasil na rota global do Marco da Biodiversidade como uma forma de garantir cada vez mais acesso às produções em grande escala do agronegócio: “seja das commodities, como soja, minério de ferro, biocombustíveis, mas também como os produtos da sociobiodiversidade, integrados a essa cadeia do agronegócio, quase como outro braço de atuação em uma forma de dar escala, tanto a exploração, quanto a agregação de valor e a própria comercialização de produtos que sintetizam patrimônio genético e principalmente conhecimento tradicional, de uma forma muito perversa, sob a linguagem da inovação, da alta tecnologia, que se apropria do trabalho acumulado de povos e comunidades tradicionais, e principalmente das terras e dos territórios”, aponta. 

Marcela traça ainda um paralelo que indica o antagonismo entre essa economia em discussão e aquela baseada na sociobiodiversidade, uma vez que a primeira é baseada em uma narrativa do “uso sustentável dos recursos naturais, de agregação de valor a esses recursos naturais, por meio da inovação e ganho de escala no patrimônio genético nacional”, conforme aparece no Plano Safra 2020-2021 e 2021-2022. Ela destaca ainda o eixo de bioinsumos no Plano Safra que está relacionado à cadeia de agrotóxicos e cita o objetivo de trabalho voltado para o aumento da produtividade das plantas a partir de alterações genéticas. Marcela aponta ainda que a flexibilização da proteção ambiental e da garantia dos direitos territoriais estão relacionados com a ampliação da escala de produção e acesso a mercados externos a partir de novos rótulos como entende-se a bioeconomia. 

Lourdes Laureano, carinhosamente chamada de Lourdinha, emociona ao compartilhar seus conhecimentos. Ela faz parte da articulação de raizeiras e tem por tradição o uso de plantas medicinais. Em sua fala, destaca o desmonte das políticas públicas promovidas que se aprofundou com governo Bolsonaro, ela cita o enfraquecimento do Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, além dos espaços de participação social como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Lourdes explica que o programa Biodiversidade Brasil, instituído pelo MAPA em 2019, preocupa as comunidades tradicionais. “Estamos diante dessa política que visa a comercialização desses produtos, exatamente os produtos que fazem parte da nossa tradição, de cuidado da saúde e de nossa prática alimentar. Nós utilizamos os recursos da biodiversidade local porque temos conhecimentos herdados dos nossos antepassados, de nossas bisavós, de nossas avós, de nossas mães. E continuamos a repassar esses conhecimentos para nossas filhas, netas e bisnetas”. Ela explica que esse conhecimento é de grande importância, principalmente pelo fato de que ele é produzido pelos próprios integrantes das comunidades a partir de “observações, experimentações, sonhos e também de inovações e é por isso que nós o conservamos”. E  complementa: ”Nós sabemos, por exemplo, o valor que tem a semente da sucupira, a semente da arnica, a semente da fava d’anta que trata muito bem das varizes”. Ela ainda retoma o contexto de pandemia em que vivemos e destaca como a vasta biodiversidade brasileira é fonte de vida e saúde. 

A Bioeconomia chega seduzindo 

O problema do programa Bioeconomia Brasil é bem mais profundo do que aparenta para a sociedade que se crê não afetada  diretamente por ele. Laureano explica: “O bioeconomia brasil chega nas nossas comunidades, mapeia nossos territórios tradicionais, acessa nossos conhecimentos para vender os recursos que nós sempre utilizamos, sem respeitar as nossas formas de organização social e política, sem respeitar a nossa escala de produção, nossos calendários, nossa economia local… Impacta totalmente a nossa autonomia, o nosso livre acesso aos recursos da biodiversidade”. Ela destaca a relevância da preocupação a respeito do tema, pois “Nós estamos prestes a vender o que temos de maior valor, que são as nossas plantas, nossas frutas, nossos alimentos, nossa medicina que nós conservamos, e em troca de quê?”. Essa pergunta parte do pressuposto de que, apesar de o programa afirmar uma preocupação com a biodiversidade e uma intenção de conservá-la, na verdade, os membros das comunidades tradicionais constataram que nada nele diz respeito à conservação e nem à proteção dos conhecimentos tradicionais associados. Bem pelo contrário, “chega para acabar de sepultar políticas públicas que nos favoreciam”. É um saque da biodiversidade brasileira ao qual não existe dinheiro que pague os prejuízos. 

Loudinha ainda destaca a importância da participação nos espaços de implementação e regulação de políticas públicas para preservação dos direitos, da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. “A bioeconomia chega seduzindo, [com discurso de que] vai desenvolver localmente, que vamos comprar os produtos que normalmente ficam desperdiçando, então é importante termos uma visão crítica sobre essas políticas que chegam localmente e sem a nossa participação, vinda através dos gestores públicos”. Ela destaca ainda a necessidade de articulação com as comunidades com objetivo de formulação de políticas públicas que as defendam.

Lei de Biopirataria e falta de participação social

Por vídeo, Cláudia de Pinho explica as dificuldades trazidas pelo descaso com o Patrimônio Genético. “A lei que regulamenta o Conselho do Patrimônio Genético é gerida pela Lei Nº 13.123. Foi uma lei não construída num processo participativo ouvindo os envolvidos, os representantes de povos e comunidades tradicionais. Com isso, temos uma lei deficitária, que não atende, principalmente, a questão da proteção e do reconhecimento dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético”. Ela explica que essa lei, que diz respeito diretamente aos povos tradicionais, é na realidade pouco dedicada à proteção do conhecimento tradicional. Esse conhecimento é uma herança pertencente ao povo como coletivo e gerado por ele mesmo, e por isso “dizemos que ele é a nossa maior riqueza. Portanto, esse conhecimento é um bem coletivo, é difícil colocar um real valor a tudo isso que foi construído ao longo dos séculos”. Por esses e outros motivos, todo o espaço de participação nas decisões que afetam suas vidas é uma conquista dos movimentos sociais, a qual deve ser garantida pelo Estado brasileiro, que tem a função de garantir este espaço para o diálogo. Ela destaca ainda a importância das políticas públicas de proteção e valorização dos conhecimentos tradicionais e critica a redução do espaço de participação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen). Cláudia questiona: “como que a gente, enquanto representação, pode colocar esse espaço para construir políticas públicas?”.  Nesse sentido ela define: “É preciso que se pense em políticas onde os povos e comunidades tradicionais não [sejam vistos como] unânimes, mas tem suas diferenças regionais e até mesmo entre comunidades… é preciso se pensar que nem tudo está a venda, que nós povos e comunidades tradicionais temos o direito de dizer não”. 

Marcela reforça as contradições do processo com a Bioeconomia Brasil e do eixo de sociobiodiversidade dentro do Plano Safra com o andamento do programa, incluindo o lançamento de portarias pelo Governo Federal, sem nenhuma consulta às comunidades. Ela destaca ainda que o Brasil levou anos discutindo o Protocolo do Nagoia e o processo foi acelerado com aprovação pela Câmara e pelo Senado em agosto de 2020, sob rescaldo do European Green Deal firmado em dezembro de 2019, que promete “transformar o bloco em uma economia de baixo carbono, sem reduzir a prosperidade e ao mesmo tempo melhorar a qualidade de vida das pessoas”, segundo anunciou o jornal The Guardian com o lançamento do projeto. Ela comenta: ”a assinatura do Pacto Verde Europeu e com o lançamento dessas políticas públicas no Brasil, é como se quer trabalhar as estruturas que se tinha para garantir algum direito aos povos e comunidades tradicionais na repartição desses benefícios e proteção dos seus conhecimentos serem transformados em direitos de propriedade da indústria sobre esses conhecimentos tradicionais e esses recursos genéticos”. Ela destaca ainda que é um movimento alinhado a esse a proposta legislativa que pretende autorizar a retirada do Brasil da Convenção 169, que diz respeito ao direito de consulta prévia livre e informada aos povos e comunidades tradicionais ante medidas que os afetem em suas vidas, territórios ou modos de vida.

Marcela fala ainda que a política adotada pelo governo brasileiro indica uma perspectiva: “Como se o patrimônio genético não fosse resultado do trabalho coletivo e imemorial das comunidades, ou seja tem trabalho associado aí para que esse recurso exista. Esse recurso diz respeito a vida das pessoas, a economia é a vida das pessoas. Não precisa ser Bio pra isso, porque ela já é vida. Colocar Bio é uma maneira de tornar esse recurso que é associado, em um conhecimento dissociado e monetizado, valorizados a partir dos princípios da indústria e da propriedade intelectual e da propriedade privada. E não da posse e da propriedade coletiva dos povos”, define.

Nessa mesma linha, em comentário postado durante a live no Youtube, Larissa Packer, membra do Carta de Belém, sintetiza a fala de Marcela: “Colocar o Bio antes de economia pretende tornar a biodiversidade um produto apropriável pela indústria, desassociado dos conhecimentos tradicionais que a produziram”. Assim, o debate coloca em pauta a necessidade de se compreender a necessidade de não se permitir tal dissociação. Vecchione apresenta portanto, em seguida, que os povos também produzem direitos, pois produzem suas próprias leis. Por isso, não há como se ter conservação sem garantia de direitos territoriais, seja demarcação, seja livre acesso ao território. Ela explica que “a bioeconomia é uma forma de integrar a sociobio às grandes cadeias produtivas internacionais com certificação e com legitimidade pra pegar a linguagem do mercado, fazendo cumprir com as exigências internacionais do cumprimento desses mecanismos de governança, de sustentabilidade ambiental”.

Veja a live na íntegra: