Debate ainda acirrado em torno dos limites da moratória da soja

O debate atual do mercado brasileiro de soja oscila entre uma lei de mercado e uma lei nacional – basicamente, entre o novo mecanismo que irá substituir a moratória da soja e as novas regras do Código Florestal. Na visão dos produtores, o Código engoliu o pacto ambiental. Na visão dos ambientalistas, a moratória protege mais a floresta que o Código, e está mais de acordo com o que os consumidores europeus querem. Na visão da indústria, se os europeus querem mais do que a lei exige, terão que pagar mais.

Esta é a tônica da discussão que irá mobilizar ambientalistas, produtores, exportadores e governo durante 2014. O nó começou há alguns meses, com o iminente fim da moratória da soja, que deveria ter terminado em 31 de janeiro. Depois de uma negociação dura, acertou-se que ó pacto continuará até dezembro. Será substituído por novo mecanismo a ser debatido e que tem que garantir a produção de soja e a proteção ambiental.

A moratória da soja sempre esteve acima da lei, por assim dizer, e continua assim. Foi assinada em 2006 entre organizações da sociedade civil e beneficiadores e exportadores de soja. A partir de julho de 2006 a indústria se comprometia a não comprar soja do bioma Amazônia que tivesse origem em qualquer desmatamento, legal ou não. O esforço era monitorado.

“Naquele momento havia uma grande questão: os consumidores europeus não queriam comprar soja de desmatamento, que estava lá em cima e provocava manchetes no mundo todo”, lembra Paulo Adário, coordenador da sociedade civil no Grupo de Trabalho da Soja (GTS) e estrategista sênior do Greenpeace Internacional. O governo Lula enfrentava picos no segundo maior desmatamento da história, precedido apenas pelas taxas gigantes de 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso.

Foi sob pressão internacional que FHC, em agosto de 1996, assinou a Medida Provisória 1.511, que aumentou a reserva legal na Amazônia e procurava conter o desastre. Antes da MP era preciso manter 50% de floresta nas propriedades amazônicas, e a partir dela a taxa saltou para 80%.

A moratória da soja era mais rigorosa – o pacto era por desmatamento algum. “Naquele momento não interessava a ninguém se o desmatamento era legal ou ilegal”, diz Adário. “As empresas não queriam estar envolvidas com desmatamento de nenhuma espécie e a indústria da soja topou o acordo.” Em 2008 o governo entrou no GTS junto com as ONGs, as empresas e entidades como a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). Era um sinal de que reconhecia a falta de governança na Amazônia e sabia que o grau de respeito à MP não permitia controlar o desmatamento.

A moratória foi um sucesso. “A queda do desmatamento no segundo e terceiro ano de vigência foi impressionante”, diz Carlo Lovatelli, presidente da Abiove. Nos 62 municípios monitorados pelo GTS, onde fica 92% da soja da Amazônia, o desmatamento caiu mais do que os resultados nacionais. “O pacto projetou o agronegócio como um setor preocupado com o desmatamento”, opina Adário.

“Começamos porque o mercado impôs, com uma dúvida monumental”, diz Lovatelli. “O que se dizia na Europa, que a soja desmata a Amazônia, não é correto. Nossa obrigação era desentortar aquele negócio”. Segundo seus números, na Amazônia estão 2,4 milhões de hectares de soja dos 28 milhões de hectares no Brasil. “Dos 10 estados do bioma, só três tinham alguma expressão em termos de soja – Mato Grosso, com 80% da soja do bioma, Pará e Rondônia”, diz. O trio é formado pelos estados que mais desmatam a floresta. “Mas só 0,7% do desmatamento na Amazônia deve-se à soja”, segue Lovatelli.

A voz destoante sobre a moratória da soja vem dos produtores, que só agora farão parte do debate no GTS. “Sempre repudiamos a moratória, nunca fomos favoráveis. Tivemos vários embates sobre isso com a Abiove”, diz Glauber Silveira, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja). “A moratória da soja era ilegal.” Explica: “Se tenho uma área na Amazônia, a lei diz que posso ‘abrir’ 20%. Mas aí eles não compram. Porque não, se posso ‘abrir’ legalmente os 20%?”.

Foi neste contexto que se deu o debate do Código Florestal e a moratória, renovada a cada ano, ficou com os dias contados. “O Código era polêmico de nascença, mas foi a melhor coisa que se podia fazer naquele momento”, diz Lovatelli. “O produtor vivia em uma insegurança jurídica monumental, com medidas provisórias. Ninguém sabia o que tinha que fazer.”

“Com a moratória estávamos atendendo uma demanda do mercado internacional, do comprador europeu, que é mais duro”, diz ele. Os europeus compram 15 milhões de toneladas de farelo ao ano. Mas o cenário internacional mudou – a China, que produz 17 milhões de toneladas de soja, consome mais de 60 milhões, tornou-se grande comprador de grãos, sem o rigor europeu. “A China não exige controle nenhum. Mas nenhum setor pode se dar ao luxo de perder o mercado europeu”, diz Adário.

Com o Código Florestal surgiu a figura do Cadastro Ambiental Rural (CAR). “O CAR irá dizer quem está legal ou não frente à legislação ambiental”, diz a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, que tem se empenhado para que o instrumento decole. O governo federal está implantando um sistema ambicioso, que requer tempo para ser implantado, por isso a extensão da moratória. “Foi uma negociação dura”, diz ela. “Construímos um caminho de consenso. O CAR não é só instrumento de recuperação ambiental, mas de controle do desmatamento.”

O MMA preparou o Sistema Nacional de Cadastro Rural (Sicar), que está pronto e irá valer para os 5,2 milhão de proprietários rurais no país. A maioria dos Estados adotará o Sicar, mas alguns preferiram caminhos próprios. É o caso do Mato Grosso e do Pará, lugares críticos quando o tema é desmatamento. O problema é que seus sistemas não têm o mesmo padrão que o federal. O CAR do Pará, por exemplo, não é georeferenciado. Os proprietários do Mato Grosso declaram as Áreas de Proteção Ambiental (APP) em beira de rio ou topo de morro, mas não dizem qual é a reserva legal, o que é crucial. O governo tenta agora “harmonizar” tudo e enquadrar na lei.

“Reconhecemos a relevância do novo Código Florestal introduzido pelo governo brasileiro e a importância do trabalho que está sendo feito na indústria, governo e sociedade civil para implementar um marco regulatório forte”, disse ao Valor Else Krueck, diretora ambiental do McDonald’s Europa. “Ainda que o McDonald’s não seja um grande comprador de soja do bioma Amazônia (menos de 1% das compras de soja na região), a moratória e os esforços do GTS têm sido muito eficientes em nos garantir que a soja brasileira que compramos não está puxando o desmatamento na Amazônia.” Declaração do gênero foi assinada por grandes compradores europeus de um grupo onde estão Marks and Spencer, Sainsbury’s, Tesco, Nestlé e Carrefour.

“Com o CAR, quem estiver errado terá tempo para consertar. Não vai dar mais para escapar”, acredita Lovatelli. Para o comprador europeu, o CAR não basta, diz Adário, porque eles se comprometeram com os clientes que seus produtos não tem a ver com desmatamento. “O CAR é um grande avanço e um grande esforço, mas não é um mecanismo de contenção”, diz.

“A aplicação do Código Florestal é o mínimo que a gente quer, mas para nós, não basta”, diz Adário. “Queremos os outros elementos que a lei não cobre, como a ameaça aos povos indígenas, biodiversidade, mudança climática. Este ano o debate será acalorado”, aposta.

No grupo da soja estão, além do MMA, Greenpeace e Abiove, a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC), as empresas ADM, Algar Agro, Amaggi, Baldo, Bunge, Cargill, Fiagril, Imcopa, Louis Dreyfus, Noble Group, Óleos Menu e Santarosa, além das ONGs Amigos da Terra, Conservação Internacional Brasil, Imaflora, Ipam, STTR de Santarém, The Nature Conservancy e WWF-Brasil.
Fonte: Valor Econômico