Partiu o trem (elétrico) de Glasgow: 2021-2030, a década crítica da transformação digital em nome do clima

Com um dia de atraso e muita expectativa, chega ao fim a COP26 – 26ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), realizada ao longo das duas últimas semanas na cidade de Glasgow, Escócia, no Reino Unido.

Na plenária, em discursos emocionados, fala-se na prova de que o multilateralismo serve para alguma coisa, que, com quase 200 países, conseguiu alcançar um consenso e fechar a agenda mais relevante desde 2015, em Paris.

Com as decisões que saem daqui hoje, pode-se dizer que partiu decididamente o “trem da ambição” de Glasgow. Essa metáfora (fatídica, se pensarmos nas locomotivas e na revolução industrial) foi usada pela presidência britânica e repetida ad nauseam pelos países. Todos querem embarcar nesse trem e acelerar a ambição.

Mas para onde vamos todos? Em um cenário de economias devastadas pelos impactos da Covid-19 e da necessidade urgente de retomar a economia, esse evento foi um marco definitivo para fazer com que o mundo todo siga em direção a um pacto verde global e para relançar, de modo agressivo, a agenda de desenvolvimento “climaticamente” sustentável, em que os objetivos sociais e ambientais são pesados de acordo com seu impacto nas emissões e no propósito final da “descarbonização”. É um cenário complexo, especialmente quando conceitos espúrios, como o de “emissões líquidas zero” (Net Zero), utilizado pelo próprio Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), colocam as falsas soluções no pacote estrutural junto a todas as ações que serão implementadas. Nestes termos, com um marco comum e uma abordagem coordenada e sincronizada, aqui em Glasgow, parece terem sido finalizados os ajustes para colocar de vez todos os países, do Norte e do Sul, em um mesmo trilho rumo ao futuro desenhado pelo Acordo de Paris. Mas que futuro é esse?

Do Pacote de Glasgow ao Pacto de Glasgow para a transição verde

Em nome do clima, o que se decide aqui é a implementação com força total da transformação tecnológica, da digitalização da economia e da sociedade e da chamada quarta revolução industrial. Este processo vem a par e passo com novas formas de espoliação possibilitadas pelo meio digital que permitem capturar, por exemplo, o Capital Natural e colocar o invisível carbono em blockchain e nos mercados.

Para superar o uso de combustíveis fósseis e dos motores a combustão, o objetivo é entrar de vez no século da eletrificação – condição material absoluta para uma sociedade e uma economia que funcionarão de modo totalmente digital. Isso significa uma oportunidade gigantesca de venda de tecnologia e patentes e de reindustrialização “verde” para os países do Norte.

Como se viu aqui [em Glasgow], a promoção e o financiamento para a eletrificação andam junto com os mega projetos de energia solar nos países que têm sol, como aqueles do norte da África, que fornecem esse tipo de energia para a Europa. Também é uma oportunidade, por exemplo, para a Inglaterra e a Austrália exportarem fazendas de energia eólica em alto mar, para outros países, como a Alemanha, promoverem o hidrogênio verde, para os Estados Unidos e a Inglaterra incentivarem usinas nucleares de pequeno porte, de agrocombustíveis com biotecnologias etc.

A universalização da energia limpa e renovável até 2030 é o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de número sete e condição fundamental para a “digitalização” de tudo.

Aqui também fica clara a existência de uma nova corrida espacial digital em prol do clima. Prova disso é o futuro lançamento de um satélite pelos Estados Unidos no final de 2022 para monitorar as emissões de metano em todo o planeta com definição de até três partes por bilhão. A transformação da matriz tecnológica – intrinsecamente dependente da infraestrutura 5G – e as disputas entre EUA e China não são tratadas aqui abertamente, muito menos recebem o teor geopolítico e militar que possuem.

A nova corrida espacial digital em nome do clima. Foto: Camila Moreno

Este olhar crítico é necessário para entender o motivo pelo qual o pedido de edição de linguagem do trecho relativo ao “phase out” de carvão e combustíveis fósseis ineficientes, feito por China e Índia e apoiado por Venezuela e Irã, causou um entrave hoje na negociação. Bem como, o trecho sobre subsídios aos combustíveis fósseis no parágrafo 36 da “overarching decision” — decisão abrangente, na tradução literal, é uma prerrogativa usada em casos especiais — também entrou em debate.

China e Índia invocaram o direito ao desenvolvimento e alegaram que o subsídio ao gás de cozinha e a combustíveis (Venezuela) se configura como ferramenta para fazer política social. Esses países lembraram que, embora todos estejam engajados na transição, as circunstâncias nacionais e os grupos vulneráveis precisam ser levados em conta. Além disso, e aqui a agenda complica, a União Europeia, apoiada pela Inglaterra, os Estados Unidos, a Alemanha, a França e a África do Sul disseram que não medirão esforços para que seus parceiros e aliados abandonem os combustíveis fósseis. Eles pretendem que seja feita uma transição global e afirmaram que não tolerarão retrocessos, sinalizando para as medidas de taxação de carbono (mecanismos de ajuste de carbono na fronteira) a fim onerar as importações com conteúdo alto de CO2, tema ao qual diversos países fizeram referência. Isso mostra como a agenda do clima está abertamente em rota de convergência com a agenda do comércio “verde”.

Desenvolvimento de baixo carbono e resiliente ao clima

Esta agenda comercial recebe a roupagem de um relançamento agressivo da agenda de desenvolvimento de baixo carbono e climaticamente compatível e chega aos países com economias combalidas pela Covid-19 e sob regimes de austeridade fiscal. Por outro lado, inúmeras declarações e promessas feitas por países, coalizões, bancos, organismos multilaterais, filantropias privadas, fundos de investimentos e outros atores anunciam uma nova era de finanças verdes, com o sistema financeiro em transformação acelerada para “investir na natureza”, regenerar e restaurar os ecossistemas e o planeta e, com isso, promover mitigação, adaptação e desenvolvimento sustentável e erradicar a pobreza.

Com este pano de fundo, o resultado da COP26 será celebrado na mídia como uma negociação difícil que alcançou um equilíbrio delicado e que exigiu que todos fizessem concessões em prol de um compromisso comum, sendo que nenhum país ficou satisfeito com o texto final e todos tiveram que ultrapassar seus limites, mas que sair de Glasgow sem um pacote de decisões não era uma opção. Afinal, os impactos das mudanças climáticas são evidentes no dia a dia e o Acordo de Paris, assinado em 2015 e que representa o grande marco multilateral para o enfrentamento da mudança do clima, ainda aguardava a finalização de várias regras para que pudesse ser plenamente operacionalizado e implementado.

Uma baliza fundamental no marco do que se aprovou aqui foi o relatório especial do IPCC lançado em 2018 e que tratou de possibilidades e cenários a fim de limitar a 1,5ºC o aumento de temperatura média global do planeta com relação aos níveis pré-industriais. Com esta ambição no horizonte, que abre espaço para a contribuição e a ação climática de atores não estatais e outras partes interessadas, foi o mantra desta COP: tudo para manter o objetivo de 1,5ºC vivo, que em inglês, até rima: “keep one point five alive”. O slogan foi adotado pela coalizão de empresas que compõem a We Mean Business Coalition.

Neste sentido, um grande destaque desta COP foi, sem dúvida, selar uma aliança com propósito comum em as partes, com a entrada dos atores não estatais, privados, no arranjo da Global Stocktake de 2023, que lançou o processo oficial de alinhamento das economias com o intuito de colocar o planeta em uma trajetória de longo prazo, determinada pelo Marco de Paris. O trilho para o futuro, para o qual o trem de Glasgow parte a toda velocidade, ainda não está todo construído, mas o caminho será majoritariamente criado pelo setor privado, e o lugar de chegada é a meta de 1,5ºC.

A COP 26 foi conduzida com mão firme pela sua presidência, a Inglaterra, que já vinha sinalizando e agindo há dois anos – já que a COP era originalmente programada para 2020 e foi postergada por causa da pandemia – e conseguiu emplacar sua agenda e garantir o “Pacote de Glasgow”. Ponto para a Inglaterra, pós-Brexit, que fez com que pontos importantes para o bloco europeu avançassem e ainda, segundo algumas interpretações, garantiu que, no bojo das modalidades do Artigo 6 (sobre os mercados ou transferências internacionais de resultados de mitigação), se abrisse um caminho para que outros países do bloco, caso venham a seguir o mesmo caminho, não estejam dependentes da unidade do EU-ETS da União Europeia e possam flexibilizar seus arranjos bilateralmente. A presidência e o secretariado da Convenção também emplacaram, sob o item “colaboração”, o reconhecimento do setor privado (high level champions of climate action) nas parcerias e na atuação conjunta para a ação climática. O multistakeholderismo aterrissa de vez no coração do processo multilateral. Nos espaços de lobby paralelos aos salões de negociação, a ONU cada vez mais é vista como uma agência com “poder de convocatória” para um balcão global de negócios.

Pontos relevantes das decisões

Como principal resultado, esta COP conseguiu fechar um “pacote” de decisões que trata de temas que passaram muitos anos em negociação. Esses pontos, entre eles, o polêmico papel que os mercados de carbono terão, demarcavam posições defendidas pelos países havia anos.

Os principais pontos tratam de:

1. Ciência e urgência

O novo relatório do IPCC é esperado para junho de 2022, a tempo de influenciar a Global Stocktake em 2023. Os cenários desse relatório serão muito importantes, já que toda a ação climática está pautada pelo aumento da ambição de limitar a mudança climática a 1,5ºC e qual é o que pode ser alcançado e com o uso de quais tecnologias, segundo a ciência disponível. Os últimos relatórios do IPCC, sobre o aumento de 1,5ºC e as tecnologias disponíveis para alcançar os cenários de mitigação, e o relatório especial sobre o uso da terra têm implicações políticas com relação às novas dinâmicas de espoliação e precisam ser levados em conta no que diz respeito ao que deve acontecer em 2022, em especial nos temas de agricultura e oceanos.

2. Adaptação e financiamento da adaptação

As partes devem entregar as comunicações de adaptação em tempo para subsidiar a stocktake global de 2023.

É importante uma meta global de adaptação para uma implementação efetiva do Acordo de Paris e engloba o programa de trabalho Glasgow-Sharm El-Sheikh, para os próximos dois anos, para elaborar a meta global (parágrafo 11). O programa de trabalhado poderá discutir agricultura e irrigação (temas-chave para a próxima COP, que acontecerá no Egito, na África, em 2022) em relação ao financiamento privado.

Embora uma meta global para adaptação ainda não tenha sido definida, a COP decidiu chamar os bancos multilaterais de desenvolvimento, outras instituições financeiras e o setor privado para fortalecer a mobilização financeira para viabilizar os recursos necessários para realizar o planejamento climático, particularmente para a adaptação, incentivando os países a continuar explorando abordagens inovadoras e instrumentos para mobilizar finanças para a adaptação junto ao setor privado.

3. Mitigação

Reconhecimento de que a meta de limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC requer a sustentação de reduções rápidas e profundas nas emissões de GEE, incluindo diminuição de 45% de CO2 até 2030 comparado ao nível de 2010 e a emissões líquidas zero perto da metade do século, assim como acentuadas reduções de outros gases (parágrafo 22).

Aceleração na chamada “década crítica” (2021-2030), convergência de estratégias de descarbonização com a entrega do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza, em conformidade com os ODS e a agenda de desenvolvimento 2030. Há uma grande preocupação em relação à tendência de atrair investimentos privados, emitir títulos verdes (dívida verde), apostar no caminho da financeirização de cada um dos objetivos dos ODS e vender “desenvolvimento” como um investimento de impacto lucrativo para o mercado.

Em 2021, o secretariado produziu um relatório com a soma das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e calculou quanto faltava para “fechar” a conta (GAP) do carbono. A última versão atualizada do relatório foi lançada alguns dias antes da COP. Para aumentar esta meta e aproveitar a “década crítica” para a ação climática, será estabelecido um programa de trabalho (parágrafo 27) para aumentar urgentemente a meta de mitigação. A COP solicitou ao SBSTA (Órgão Subsidiário de Assessoria Científica e Tecnológica) uma proposta de decisão com recomendações para a próxima Conferência das Partes do Acordo de Paris (CMA).

Este movimento quantificação e integração, se soma a importância de alinhar as NDCs a estratégias de desenvolvimento de longo prazo de baixa emissão de gases de efeito estufa. Essas estratégias (Artigo 4, parágrafo 19, do Acordo de Paris) devem ser comunicadas à COP como base da transição justa ao Net Zero (parágrafo 32 da decisão da COP) por volta da metade do século. É urgente questionar a interpretação de “transição justa” a emissões líquidas zero que o texto tenta normalizar.

O parágrafo 36, que trata da tecnologia para a mitigação, foi o que criou o momento de maior tensão na conclusão do pacote com a oposição da China e da Índia. Esse parágrafo conclama as partes a acelerar o desenvolvimento, a implantação e a disseminação de tecnologias e a adoção de políticas de transição em direção a sistemas de energia de baixa emissão, incluindo a intensificação de esforços para diminuir o uso de carvão e os ineficientes subsídios aos combustíveis fósseis (vale destacar que este parágrafo foi editado oralmente no plenário; a nova versão de redação ainda não está on-line).

Embora o termo Soluções baseadas na Natureza (NbS) não esteja no texto, o parágrafo 38 da decisão é bem claro ao enfatizar a “importância de proteger, conservar e restaurar a natureza e os ecossistemas para alcançar a meta de temperatura do Acordo de Paris, incluindo florestas e outros ecossistemas terrestres e marítimos que atuam como sumidouros e reservas de gases de efeito estufa e que protegem a biodiversidade, enquanto garantem salvaguardas ambientais e sociais”.

Artigo 6.

O maior resultado de Glasgow foi concluir a negociação sobre o famoso Artigo 6 do Acordo de Paris, que trata dos mecanismos de mercado. Muitos países defendiam suas posições havia décadas, como era o caso do Brasil, o que fazia com que não houvesse chance de consenso entre as partes.

Agora há uma estrutura de operacionalização para as “abordagens cooperativas” e os mercados. É claro que ainda há muito trabalho a ser feito, mas a infraestrutura pela qual a financeirização do clima vai entrar na corrente sanguínea da arquitetura multilateral de governança do clima foi selada aqui.

A negociação foi destravada com uma proposta de meio-termo feita pelo Japão e com aopio dos EUA, da União Europeia e do Brasil. O Brasil cedeu em questões caras e não levou nada em troca. Não tinha capital moral nas atuais condições e não tinha como barganhar, já que é visto como um pária ambiental global, campeão do desmatamento, atacado por todas as frentes.

A referência explícita à REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) foi excluída do texto final do Artigo 6.2, e parece que isso não foi obra do Brasil. O artigo 6.2 trata da transferência de ITMOs (resultados de mitigação transferidos entre países).

Na plenária final, o Brasil defendeu que amadureceu muito sua posição e fez concessões em nome de um compromisso e de uma decisão equilibrada, sem disfarçar que teria preferido um texto diferente. O texto não é perfeito, mas é um texto que dá para trabalhar nos próximos anos. Isso indica que ainda há muito pela frente na consolidação das regras de operação. Segundo o Brasil, o Artigo 6, como foi aprovado, oferece modos de facilitação para que os países implementem suas NDCs através do uso de “unidades a serem ajustadas” (Art. 6.2). O artigo em questão também permite novo canal de financiamento internacional para que os países em desenvolvimento realizem seus esforços de mitigação através de “unidades de suporte” (Art.6.4). Apesar da linguagem sofisticada, o que foi determinado em Glasgow é um pacto que se funde à promessa de desenvolvimento, em troca de acelerar a financeirização da agenda ambiental e subjugar os países do sul de forma que se tornem subordinados e dependentes da transformação digital. Daqui para a frente, há a necessidade de um profundo debate sobre as consequências desse pacto para o Brasil, a maneira como entramos na “década crítica” e os custos disso.

Artigo escrito por Camila Moreno para o Grupo Carta de Belém diretamente de Glasgow, na Escócia.