Qual é o papel do mercado para a ação climática?

O principal objetivo da COP26 que ocorre em Glasgow é fechar o Livro de Regras do Acordo de Paris. Para isso, um ponto central da negociação ainda em aberto é o Artigo 6, que diz respeito aos mecanismos de mercado e não mercado para compensar emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). Para o Grupo Carta de Belém, a adesão a esta medida implica a flexibilização das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) pelos Estados que fazem parte do acordo climático. 

A criação de um mercado de carbono dentro do marco das negociações “é altamente complexa e politicamente muito sensível”, explica Marina Carrilho, diplomata da Divisão de Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. As emissões de GEE são uma externalidade negativa do sistema produtivo e precificar o carbono significa atribuir um custo aos impactos gerados pela atividade humana, ou seja, internalizar os custos sociais gerados pelas ações dos entes privados, estipulando um valor a cada tonelada de GEE emitida. 

No entanto, incluir o mercado de carbono nas medidas do Acordo do Clima torna oficial uma ferramenta que já tem se mostrado ineficaz, pois se concentra na compensação de emissões e não na sua redução para evitar um aquecimento global de mais de 1,5ºC.

A COP 26 encerrou no último sábado, 13/11, com acordo sobre o artigo 6 do Acordo de Paris, de 2015, que trata do mercado de crédito de carbono.

Em que consiste a precificação do carbono?

Em teoria, a precificação tem um potencial de redirecionar a demanda dos consumidores e investidores para produtos com menos emissões e estimular investimentos por meio de projetos de desenvolvimento sustentável em tecnologias mais limpas, segundo expõe Carrilho. 

No entanto, existem muitos questionamentos sobre o real poder dos preços para alocar (para o quê e para quem) recursos na economia. Esse choque de preços nunca aparece como instrumento econômico isolado. Ele se associa a medidas de austeridade fiscal e monetária que afetam a autonomia dos Estados para desenvolver e financiar políticas públicas, em particular, as socioambientais. Não é por acaso que observamos, no Brasil, um forte desmonte desse tipo de política pública.

Nesse sentido, a fé no mecanismo de preços como instrumento para combater as mudanças climáticas indica uma única coisa, segundo Daniela Gabor: “Depois de quase dois anos de expansão monetária e fiscal relacionada à pandemia, estamos de volta aos apelos para encolher o orçamento público”.

O Banco Mundial calcula que para implementar as NDCs do Acordo de Paris é necessário um investimento em torno de US$ 135 bilhões por ano até 2030, de acordo com as estimativas atuais, o que poderia variar até US$ 500 bilhões. “Tem uma grande incerteza nesses números porque sabemos que vai demandar um grande esforço econômico, e, considerando esse cenário, cada vez mais países têm adotado um sistema de precificação de carbono”, afirma Carrilho. 

Existem duas vias principais para precificar o carbono: (i) a aplicação de um tributo por cada tonelada emitida e (ii) mediante o formato de mercado de carbono. 

O formato de mercado inclui dois mecanismos: os créditos de carbono (conhecido em inglês como baseline-and-credit system) e o comércio de emissões (baseado no cap-and-trade)

  • No primeiro caso, o sistema de baseline-and-credit, os países e agentes econômicos estabelecem qual é a linha de base em relação às emissões históricas e os padrões de desempenho operacional para GEE. À medida que esses entes são capazes de reduzir suas emissões com base no valor de referência, é possível emitir créditos de carbono para serem comercializados com outras empresas interessadas em compensar níveis de emissões excedentes. 
  • No segundo caso, o sistema de cap-and-trade, são as autoridades regulatórias que criam um teto pelo total de emissões que os agentes de um determinado setor ou mercado podem emitir e estabelecem certos números de permissões de emissões que podem ser comercializados entre quem excedeu o limite e quem ainda ficou com margem.

A proposta de precificação do carbono já existe desde o final dos anos 90, quando foram inseridos, no Protocolo de Quioto, três instrumentos voluntários de mercado para compensação de emissões. Mas, no passado, como agora, ela se relaciona a um pacote de austeridade impulsionado pela organização da economia e da sociedade segundo uma lógica neoliberal, que tende a transformar o Estado no garantidor de primeira instância para o investimento privado, mesmo que isto implique retrocesso de direitos.

O que propõe o Artigo 6 do Acordo de Paris? 

Duas décadas depois das primeiras medidas para a precificação do carbono, o Artigo 6 do Acordo de Paris traz uma proposta para oficializar mecanismos de mercado (especificados nos itens 6.2 e 6.4) e de não mercado (item 6.8) a fim de compensar as emissões, o que implica flexibilizar as NDCs. 

  • Item 6.2: propõe um comércio agregado de resultados de mitigação, ou seja, o país que consiga reduzir mais do que a meta prevista no Acordo de Paris, ou que tenha carbono estocado em seus territórios, pode vender esse excedente a um país que tenha conseguido cumprir seus compromissos por meio de um mercado privado baseado em “Resultados de Mitigação Internacionalmente Transferidos” (ITMOs). Isso provoca um déficit nos compromissos: em vez de reduzir efetivamente suas emissões de gases de efeito estufa, alguns países poderão comprar créditos para continuar poluindo.
  • Item 6.4: é um chamado para a entrada do setor privado nos mecanismos de compensação de emissões de GEE por meio da implementação de projetos que não precisam estar diretamente sob abrigo de nenhuma ação de governo. Nesta modalidade, os Estados se comportam como anfitriões que, por meio de cartas de aprovação, permitem que esses projetos sejam desenvolvidos nos seus territórios sempre que estejam certificados e validados por um órgão superior constituído no âmbito do Acordo de Paris. Os entes desenvolvedores são os responsáveis pelos projetos e, portanto, os únicos que podem emitir e vender os créditos correspondentes ao carbono estocado. Como resultado, os desenvolvedores de projetos recebem benefícios econômicos e, por outro lado, as empresas poluidoras são autorizadas a descontar os créditos adquiridos no balanço das suas emissões.
  • Item 6.8: é uma proposta de mecanismos de não mercado que não implicam intercâmbio de unidades de mitigação. Inclui diversos tipos de cooperação, como a iniciativa já em curso REDD+, que foi aprovada no Marco de Varsóvia, para promover o desenvolvimento sustentável combinando adaptação, mitigação e meios de implementação. Essas iniciativas não substituem as NDCs, mas abrem espaço para a “adicionalidade” aos compromissos voluntariamente assumidos e apoiam financeiramente os países e territórios do Sul Global para que consigam diminuir as emissões provenientes de desmatamento e degradação florestal.

Qual é o objetivo oficial do mercado de carbono?

O objetivo declarado do mercado de carbono é reduzir custos na implementação das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Aqui, fica evidente, mais uma vez, como o argumento da austeridade fiscal emerge para justificar o engajamento do setor privado em ações de mitigação. 

Entraves ao Artigo 6 no contexto das negociações

No âmbito das negociações climáticas, estava previsto que o livro de regras do Acordo de Paris estivesse concluído na COP24, em Katowice, na Polônia. No entanto, as polêmicas derivadas dos pontos soltos do Artigo 6 e das propostas de mercado de carbono impediram que se chegasse a um consenso satisfatório tanto na COP24 quanto na COP25, em Madri, na Espanha. Um dos principais entraves é o risco sobre a possível dupla contabilidade derivada das atividades relacionadas com o item 6.4. Como os países anfitriões de projetos de desenvolvimento vão contabilizar as transferências de créditos de carbono realizadas por entes do setor privado? 

O benefício econômico iria para a empresa ou organização privada responsável pelo projeto enquanto o país estivesse adquirindo um saldo positivo de captura de carbono por meio dessa iniciativa, mas ainda não foi estabelecido se seria ou não contabilizado no balanço das NDCs. Aliás, também não há uma determinação de como fazer um ajuste correspondente entre as NDCs de cada país; alguns têm metas de redução de emissões absolutas, outros relativas e outros nem sequer têm metas especificadas. “Essa complexidade vem da barganha que permitiu o estabelecimento das Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas, metas não vinculantes e definidas por cada Estado”, declara a negociadora Carrilho.

Da mesma forma, continua no ar a questão sobre se os créditos do Protocolo de Quioto referentes à implementação de mecanismos de desenvolvimento limpo poderão ser ou não transacionados no marco do Acordo de Paris. Outro fator que está bloqueando a negociação do Artigo 6 é a indefinição sobre as transações de carbono, se elas teriam uma obrigação legal de contribuição com o fundo de adaptação conforme o princípio de obrigações comuns porém diferenciadas e se existirá a possibilidade de aplicar Zero Profits às transações de ITMOs, que são os resultados dos créditos gerados e comercializados entre países de acordo com o item 6.2.

Trata-se de uma série de questões inter-relacionadas entre si que não podem ser tratadas de forma isolada para poder destravar o Acordo de Paris. “É como um cubo mágico, em que é preciso alinhar as cores para armar o cubo. Aqui são múltiplos elementos que devem ser alinhados para que se chegue a um acordo satisfatório”, exemplifica a negociadora brasileira Carrilho. 

Um dos avanços das negociações de Katowice foi a adição do parágrafo 77D, que estabelece a necessidade de reportar no marco de transparência do Artigo 13 do Acordo de Paris qualquer atividade ligada à transação de mercado de carbono. O Artigo 13, sobre compromissos de transparência, estabelece responsabilidades comuns porém diferenciadas. Ele exige que os países signatários reportem seus inventários de emissões de gases de efeito estufa e prestem contas da implementação das suas NDCs e das ajudas financeiras aos países vulneráveis que precisam de auxílio para concretizar ações de mitigação à mudança do clima. No entanto, o formato, o conteúdo e a periodicidade desses relatórios ainda não foram definidos. 

O Artigo 13 continua em aberto, aguardando consenso em Glasgow, pois também depende do fechamento de todo o conjunto do Artigo 6, ou seja, sem desmembramento de nenhum dos seus itens. O maior risco de cisão está no item 6.2, no qual as partes pressionam para que os atuais termos regulatórios que são muito leves permitam às partes comercializar e ligar mercados paralelos de carbono. Permitir a autorregulação do mercado de carbono implica um cheque em branco para poluidores, uma caixa preta de ações climáticas com um maior risco para a integridade socioambiental.   

“Temos pressionado muito para ter um salvaguarda no item 6.2. desde Madri. Algumas das partes têm sumariamente ignorado essa proposta, já que têm interesse em descolar o 6.2 do resto do pacote para avançar com isso rapidamente e ficar só com a obrigação de reporte no âmbito da transparência (Artigo 13), mas a gente acha que isso não é uma solução satisfatória”, adiciona Carrilho. 

Sobre o item 6.4, que permite a entrada de entes privados no mecanismo de compensação por meio de projetos considerados como “desenvolvimento sustentável”, é necessária a regulação do formato baseline-and-credit para que se saia da COP26 com um sistema centralizado robusto de vigilância estabelecida e multilateral para não deixar o mercado de carbono nas mãos da autorregulação. 

Carrilho especifica que “o pacote de Glasgow é um pacote político; os temas tecnicamente complexos e politicamente sensíveis terão que ser fechados em programas de trabalho posteriores”. Além disso, o Artigo 6 não traz uma discussão dividida por setores, não inclui na pauta das negociações uma menção específica ao tema da compensação florestal (offset das florestas) e das Soluções baseadas na Natureza. Ambas as supostas soluções têm implicações incertas sobre a integridade socioambiental dos ecossistemas e dos territórios.

Para o Grupo Carta de Belém, as métricas e os instrumentos de vigilância que vêm sendo discutidos no âmbito da negociação climática deverão contribuir para encarecer o preço do capital em países emergentes, aumentando o nível de dívida das sociedades e produzindo um cenário devastador de concentração de riquezas com socialização dos riscos e das perdas econômico-financeiras.

As florestas têm uma importância essencial nos mecanismos de luta contra a mudança climática, mas 80% das emissões de GEE derivam dos combustíveis fósseis. Muitas das propostas das atuais negociações da COP26 dão importância desmesurada às Soluções baseadas na Natureza, mas isso só representa 20% do problema. “O Brasil tem sido bastante crítico em relação a essa atenção desmedida à natureza em detrimento da importante responsabilidade que tem cada setor para alcançar uma solução climática a longo prazo”, sublinha Carrilho. 

Nesse contexto, o item 6.8 se apresenta como um instrumento muito importante, pois sai da lógica do Net Zero, soma zero de emissões de carbono compensadas por meio de mecanismos de mercado. Ele se apresenta como uma ‘adicionalidade’ real aos compromissos de redução de emissões das NDCs fora da lógica de transações com unidades de carbono. A negociadora Carrilho defende um caminho no qual se alcance um acordo de um método único que obrigue as partes à mesma transação sem que o mercado agrave a crise provocada pelas emissões de GEE. No entanto, se for inevitável a entrada do mercado nos mecanismos da luta contra a mudança climática, é necessário trabalhar numa regulamentação que permita de fato que os governos tenham uma função regulatória e que a atividade do setor privado seja complementar à ação pública para que as NDCs não sejam flexibilizadas. O mercado de carbono não deve ser visto como substituto à ambição dos governos.

O mercado de carbono é uma falsa solução da crise climática 

O conceito de emissões líquidas zero (Net Zero), que está atualmente sendo negociado na COP26, se baseia nos mecanismos de compensação (offset) e no mercado de carbono para flexibilizar e financiar as NDCs dos Estados que fazem parte do Acordo de Paris. Com isso se perpetuam injustiças e se coloca em risco a integridade socioambiental como um todo. Qualquer projeto tem um impacto que vai além das emissões e afeta também a biodiversidade, os solos, os cursos de água, a população local e seus direitos básicos constitucionais. 

Para se obter um equilíbrio climático, é preciso colocar limites às emissões, mas o mercado de carbono tem se mostrado ineficaz para reduzi-las de forma real. Se um país ou uma empresa pode aumentar suas emissões porque é capaz de fazer uma compensação por meio da compra de créditos de carbono ou da implementação de projetos de offset florestal, o mercado de carbono não é mais do que uma licença para continuar poluindo. Ou seja, mantém os lucros dos países do Norte Global e transforma os territórios do Sul Global em sumidouros de carbono mundiais. 

Trata-se de uma falsa solução da crise climática, com novas dinâmicas coloniais de espoliação e privatização de terras do Sul Global. As chamadas Soluções baseadas na Natureza, apoiadas pelos mecanismos de compensação, atentam contra os direitos das populações tradicionais e reduzem a “natureza” à prestadora de serviços para o proveito de empresas, mercados e países industrializados poluidores. 

As soluções efetivas passam por reconhecer as práticas eficazes de povos indígenas, de comunidades tradicionais e da agroecologia para a conservação dos territórios e da biodiversidade. Para isso, são essenciais tanto a participação dessas populações nas negociações climáticas como a demarcação de terras indígenas e quilombolas com a garantia de que não vão virar ativos financeiros do clima para que poluidores compensem suas emissões às custas dos esforços da população local. O papel de contribuição das florestas em pé precisa continuar sendo visto como uma adicionalidade, e as responsabilidades devem ser comuns, porém diferenciada; os países que mais emitem e emitiram historicamente são aqueles que precisam realizar as maiores reduções. 

Mercado de carbono, offset florestal, Net Zero e Soluções baseadas na Natureza são “propostas antigas travestidas de novas, mas que vêm rodando nesses mais de 26 anos de conferências do clima sem aportar soluções efetivas para a crise climática e geral que vem enfrentando o mundo”, conclui Maureen Santos, coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE e membro do Grupo Carta de Belém.

Confira como foi o Webinário “Artigo 6°: Qual o papel do mercado para a ação climática?”, que contou com a mediação da professora Marcela Vechhione (Grupo Carta de Belém e UFPA/NAEA), e a participação de Maureen Santos (Grupo Carta de Belém, Plataforma Socioambiental e FASE):