Green New Deal: que diacho é isso?

O Green New Deal (GND), em sua formulação estadunidense e europeia, e os efeitos da discussão da “economia verde” no debate da reforma fiscal brasileira foi o tema do terceiro seminário organizado pelo Grupo Carta de Belém. O ciclo de encontros tem o objetivo de discutir os modelos de desenvolvimento e as propostas de recuperação econômica para a saída da crise pós Covid-19. 

O GND é uma proposta de revisão do pacto social que constituiu a sociedade moderna no pós-Segunda Guerra Mundial e faz referência ao New Deal. Este estabeleceu-se a partir de uma série de políticas formuladas para promover a recuperação dos Estados Unidos da crise de 1929.

Essa reformulação do pacto social reaparece em um momento em que as questões ambientais são colocadas no centro da agenda econômica e como saída para as crises capitalistas agravadas pela Covid-19. “Se na década de 1930 o eixo da economia era a indústria, agora é o sistema financeiro que comanda a acumulação capitalista”, pontuou Tatiana Oliveira, membro do GCB e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC). “Isso significa que a “recuperação verde” pensada como saída para as múltiplas crises que vivemos alia os processos de financeirização da natureza com o desenvolvimento sustentável”, completa. 

A discussão foi animada por três integrantes do Grupo Carta de Belém, que trouxeram pontos de vista complementares sobre o tema e o acúmulo dos debates que o grupo vem produzindo. 

Green New Deal estadunidense  

Enquanto o New Deal surgiu na década de 1930, como resposta à “grande depressão” após a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, o Green New Deal começa a ser debatido em 2008 como proposta para recuperação econômica da crise financeiro global e de reforma estrutural do sistema monetário e financeiro internacional. “Tudo começou como uma proposta de recuperação verde da economia. O mesmo repertório que a gente escuta hoje no contexto da pandemia do coronavírus. Num momento em que a agenda climática e econômica passavam por uma convergência”, explicou Tatiana Oliveira. 

Para Tatiana, alguns atores foram chave na formulação estadunidense do GND. O debate começa na Europa em 2007 e é incorporado por Barack Obama na sua plataforma de governo. Em 2018, a proposta é apropriada por Alexandria Ocasio-Cortez, deputada de uma seção de democratas “pela justiça social” (Justice Democrats). 

Enquanto a primeira proposta europeia incidia sobre os organismos econômicos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, além do parlamento europeu; a Alexandria Ocasio-Cortez traz a discussão para a política interna estadunidense, inserindo o debate sobre desigualdade econômica, social e racial. Por isso, a ênfase dessa proposta na  discussão sobre “transição justa”, pautada no debate das atividades econômicas que precisam deixar de existir em uma economia verde e os tipos de atividade que precisam nascer, sem reforçar as desigualdades sociais já existentes.  

Entretanto, o GND também ajuda a consolidar uma crença de que o sistema financeiro pode trazer bem estar para a população, introduzir novos padrões de consumo, redefinindo escalas de produção, distribuindo telecomunicação e conhecimento”, critica Tatiana. Na prática, sabemos que esta é uma falsa solução.

Green New Deal da União Europeia

Na Europa, o GND é relançado quando Ursula von der Leyen assume a presidência da Comissão Europeia em 2019 e propõe um novo acordo verde europeu. “Quando a Ursula von der Leyen fala que este plano é o equivalente à Europa levar o homem para a lua, ela está fazendo referência ao plano que a partir da metade do século XX orientou a corrida tecnológica dos EUA no contexto da Guerra Fria. Se trata claramente agora de uma aposta na corrida tecnológica que vai definir o futuro da hegemonia, estão em jogo grandes infraestruturas para o capitalismo operar daqui pra frente, como o 5G”, contextualiza Camila Moreno. A pesquisadora, que reconstruiu em sua apresentação o recente histórico do GND europeu, chama a atenção para os perigos de uma imposição dos princípios da transição europeia da “economia verde” na agenda ambiental multilateral. Ela também avalia que a formulação do GND na Europa tem caminhado de forma assustadoramente veloz, mesmo durante a pandemia, impedindo um debate ampliado da sociedade civil. 

As conversas iniciais começaram em março de 2018, em um contexto de discussão de como tornar o sistema europeu sustentável e de como financiar esta transição. Já no fim de 2019, um plano de ações havia sido aprovado. Para isso, entre outras medidas, está sendo criado um grande esquema de certificação de produtos sustentáveis conectados à novas linhas de financiamento. Esse esquema foi apresentado em junho de 2019 e foi aprovado pelos chefes de estados europeus em dezembro do mesmo ano. As ações têm como horizonte tornar o continente europeu o primeiro a ser “climaticamente neutro” (reduzir em 50% as emissões de carbono até 2030, comparado com 1990) e zerar as emissões líquidas (net) de carbono do bloco até 2050, somado também a objetivos de desenvolvimento e justiça social, no marco dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis.  

Em janeiro de 2020, o primeiro plano de ação da economia circular e da indústria já estava pronto. Em março, em plena pandemia, os ministros do meio ambiente e das finanças se reuniram e apresentaram três documentos importantes: a lei climática unificada, concentrando os marcos legais dos países europeus; a proposta do mecanismo de transição justa; e o plano de investimento do GND da União da Europeia. “No meio da quarentena, em maio e junho, a União Europeia aprova a estratégia de biodiversidade e a estratégia de agricultura. É impressionante que num contexto onde as pessoas não estão podendo se reunir presencialmente, estão sob medidas extraordinárias e preocupadas com a pandemia, o contexto de emergência serve para tratorar e aprovar uma série de coisas de grande impacto e de diretivas de longo prazo”, critica Camila.

Mas o que há por trás desse rápido processo de idealização e implantação da transição para a “economia verde europeia”? A fonte do financiamento para esta transição vem da parceria público privada. É uma aposta na indústria têxtil, na indústria do plástico e alimentícia, “todas elas usando biologia sintética, dentro da lógica da bioeconomia”, explica a pesquisadora. 

Somado à isso, está a digitalização da agricultura para impor a submissão da lógica do comércio à métrica do carbono, por exemplo, um sistema de rótulos e embalagens com informações sobre o que é nutricionalmente válido e ecologicamente correto, excluindo do mercado os produtos que não passem por estes sistemas de certificação. “É o coração do New Deal. Fundir a agenda de comércio e as políticas de produção com o processo de financeirização da natureza. Sob o pretexto de proteger o clima, não vão deixar entrar no bloco qualquer produto que tenha mais carbono que o produzido na Europa. E se quiser entrar, vai ter que comprar a neutralização nos mercados”, alerta Camila.

Para ela, a construção do GND Europeu de forma rápida e baseada em princípios que articulam os estados europeus a partir de uma “descarbonização” de mercado, significa uma antecipação da Europa em pontos chaves na agenda de negociação ambiental multilateral de clima e biodiversidade, cujas reuniões deste ano foram canceladas e postergadas para 2021. A expansão das unidades de conservação, a aposta na biologia sintética e a imposição de uma agenda de saúde única global, são alguns destes pontos, observa a pesquisadora. 

Para se ter uma ideia do que significa isso, em 2021 a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) fará uma conferência sobre os sistemas globais de alimentos. A ideia central é que nada que “está fora do sistemas de rastreabilidade, monitoramento e certificação sob padrões internacionais que eles querem vender, pode ser comercializado como saudável”, conclui Camila. 

A Reforma Fiscal Verde

No Brasil, o debate do GND está menos estruturado, mas tem despontado de forma precipitada neste momento de crise política e econômica, agravadas pela pandemia. No debate da recuperação econômica têm surgido apontamentos de que é preciso fazê-la de forma sustentável. Em agosto deste ano, por exemplo, 18 ex-ministros da fazenda fizeram uma carta falando em economia de baixo carbono. 

A discussão de uma “economia verde” tem aparecido também como uma pauta importante no debate da reforma tributária e com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019. “O tema da reforma tributária começa pipocar com mais força e entra esta linha verde e sustentável para se apresentar como diferente, mas não traz novidades”, explica Luz González assessora da secretaria de meio ambiente da Central Única de Trabalhadores (CUT).

Paulo Guedes, ministro da economia, vem comentando a possibilidade do governo criar um imposto verde destinado a incentivar a redução das emissões de carbono. Para Luz, pronunciamentos como este significam uma resposta às pressões internacionais diante do desmonte das políticas socioambientais brasileiras, mas que podem não apresentar soluções verdadeiras. “Este debate que surge em um momento de crise econômica, de procura por saídas que respondam a uma agenda internacional, mas que concretamente vão reforçar desigualdades que já existem no nível socioambiental”, explica.

A assessora alerta as organizações que trabalham historicamente com temas que estão sendo discutidos na reforma tributária para que não percam a oportunidade de intervir no debate trazendo suas contribuições. A “Campanha Permanente contra a os Agrotóxicos e pela Vida”, por exemplo, já tem reivindicado a necessidade de acabar com a isenção de impostos sobre estes produtos. Grupos atingidos pela mineração também reclamam os impostos não pagos pelas mineradoras. “Tem a questão das armadilhas que podem surgir neste debate, como a compensação: tributar por um lado e, por outro, reforçar velhas construções que a gente já debate há muito tempo e que tratam das falsas soluções”, resume.

Dentro da discussão da PEC 45, a frente parlamentar ambientalista recebeu organizações civis que trabalham com o tema para apresentar uma proposta de nove pontos sobre a reforma fiscal verde. Tal iniciativa revela como este debate se apresenta de forma concreta para diversos grupos na sociedade e a importância de acompanhar e compreender melhor quais as ligações com temas trabalhados pelo Carta de Belém historicamente.

Por Lívia Alcântara (jornalista e socióloga)
Com equipe de comunicação e animação do Grupo Carta de Belém /Amigos da Terra Brasil