“Uma coisa é o impacto das chamas, o pós incêndio é o que nos deixa mais temerosos”, afirma Claudia de Pinho, da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira

Em entrevista, Claudia de Pinho, representante da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira, de Cáceres (MT), fala sobre o contexto complexo que as comunidades estão atravessando em meio a pandemia de Covid-19 e como setores tem se aproveitado desse momento para avançar com o fogo sobre a região do Pantanal. Neste domingo (20), a Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira lançou uma carta em que denuncia a invisibilização dos povos originários e comunidades tradicionais da região e o apagamento da luta pela conservação do território em que coexistem secularmente. A carta também demanda uma lista de ações para minimizar os efeitos colaterais dos incêndios florestais que atingiram os territórios.

As queimadas no Pantanal aumentaram 208% entre 1º de janeiro e 16 de setembro deste ano em relação ao mesmo período de 2019, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Nesse ano, foi registrado o maior número de focos de incêndio desde que o monitoramento começou. Claudia, com quem conversamos na última sexta-feira (18), pontua que o contexto é difícil com a falta de políticas públicas para conter o avanço da pandemia sobre as populações tradicionais e com o discurso de aproveitar o momento para “passar a boiada” afirmado pelo próprio Ministro do Meio Ambiente em reunião do ministerial em abril deste ano. “A questão da pandemia e, agora, dos incêndios florestais é, na verdade, a consequência do uso indevido da natureza. Esse é só mais um de vários impactos que o Pantanal vem sofrendo ao longo dos tempos. E aí falamos do próprio desmatamento para aumento da pecuária ostensiva”.

Claudia de Pinho, da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira

Para Claudia, esse momento chama atenção pela imagem dos incêndios, dos animais mortos, a fauna nativa — uma das mais diversas do mundo, com 1.200 diferentes espécies de animais, dos quais 36 estão ameaçadas de extinção —, mas o que preocupa as comunidades com maior intensidade é o período posterior às chamas: “Uma coisa é o impacto das chamas, o pós incêndio é o que nos deixa mais temerosos”. Ela relata que os impactos das chuvas, ao mesmo tempo que apaga os incêndios, leva as cinzas e animais mortos para a bacia do rio, contaminando a água da qual dependem as populações que vivem ali, para consumo e para produção de alimentos. 

Claudia denuncia também a má vontade política expressa na diminuição de orçamentos para proteção da área que queima agora e a diminuição dos investimentos em brigadas para combater os incêndios. Enquanto ocorreu um aumento de 30% no último ano nas queimadas na Amazônia e com o Pantanal registrando o maior número de queimadas em mais de uma década, o governo  cortou drasticamente a verba para contratação de profissionais para prevenção e controle de incêndios florestais em áreas federais. Os cortes em verbas com brigadistas chegaram a 58%, de acordo com dados oficiais do Portal da Transparência. Ela avalia que o modelo de gestão é equivocado e que deixa claro um posicionamento a favor dos pecuaristas e produtores de grãos para exportação.

O caminho do fogo é o da expansão do agronegócio
Ela relata que, quando começaram os incêndios, houveram muitas falas que responsabilizavam os ribeirinhos das comunidades pantaneiras por iniciar o fogo. Narrativa essa reafirmada pelo presidente na abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas nesta terça-feira (22). “Eu cansei de participar de reuniões em que fazendeiros diziam que eram os verdadeiros pantaneiros. Com essa questão dos incêndios, isso volta muito forte. Tem até faixas dizendo: os verdadeiros pantaneiros que estão aqui há 300 anos é que conservam o Pantanal”. Ela relata ainda que participou de audiência pública na Assembléia Legislativa de Cáceres (MT), na qual representantes dos pecuaristas afirmaram que o Pantanal já teria acabado não fossem as fazendas. Eles defendem que a Lei do Pantanal (PL 9950/18) permita mais áreas de pastagem, pois seria o gado que evitaria o acúmulo de matéria orgânica. Eles sustentam, ainda, que esse suposto acúmulo de matéria orgânica teria incentivado a propagação do fogo nas proporções que estão ocorrendo.  

A expansão do agronegócio sobre o Pantanal é estratégico. Calcula-se que haja cerca de 600 comunidades tradicionais pantaneiras e essas comunidades coexistem com a natureza de forma secular. “Existe um plano de retirada das pessoas do Pantanal. Essa imagem do Pantanal como um ambiente conservado, que a onça é mais importante que as pessoas que ali conservam, que ali habitam, ela não está dissociada com o plano de retirada das comunidades que ainda resistem”, avalia. Claudia defende a importância de preservação do Pantanal pela localização e riqueza sociobiológica do bioma: “O Pantanal é um grande corredor ecológico e cultural que liga o Cerrado e a Amazônia”.

O Pantanal é a maior área úmida inundável do mundo. Claudia aponta que há um apagamento sobre a história dos povos que ali vivem há séculos e que mantém um manejo com equilíbrio de uso, ocupação e conservação do Pantanal pelas práticas tradicionais. “Seja ela o uso da medicina tradicional, agricultura adequada ao meio ambiente, seja o extrativismo que está muito forte na forma de vida das comunidades”. 

Levantamento do jornal O Globo, com dados do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil (MapBiomas), aponta que as áreas de pastagem plantadas no Pantanal mais do que triplicaram desde 1985, saltando de 656,5 mil hectares naquele ano para 2,25 milhões de hectares em 2019. Um aumento de 244% em 34 anos. Um trecho que supera o tamanho do estado do Sergipe. Nesse sentido, Claudia relembra que o projeto expansivo agrícola não é novo para a região. A expulsão das comunidades tradicionais pantaneiras vem ocorrendo de forma sistemática, mas com maior intensidade neste momento de pandemia com a legitimação do governo. “Desde a década de 1970 estão tentando acabar com os grupos que resistem no Pantanal. Existe um processo de desocupação do Pantanal. Ele não vai tirando as pessoas rapidamente do seu lugar, ele vai acontecendo aos poucos para que as pessoas saiam”.

CAR, grilagem de terras e ameaças

CAR (Cadastro Ambiental Rural), que é autodeclarado, tem servido como ferramenta de grilagem de terras

Durante a infância, no período da Ditadura Militar, Claudia e sua família, assim como tantas outras, viveu a pressão dos grileiros sobre o território: “Minha mãe conta que, na década de 60, chegou um jagunço onde a família morava e disse para eles que até o amanhecer eles deveriam ir embora das terras, pois elas tinham dono. Era uma comunidade grande na divisa entre Brasil e Bolívia. Saíram levando o que podiam, pois sabiam que o risco era de morte. Naquela época, imperava o lema de “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Ela conta que viram o que deixaram para trás, a roça e a casa, tudo sendo queimado: “Na vida da minha família isso é muito cruel. É mais uma forma de como se dá a grilagem de terras”. 

Claudia avalia que esse processo histórico de grilagem das terras dos povos originários e das comunidades tradicionais passou da brutalidade das ações dos jagunços pagos por fazendeiros para a legalidade balizada pelo Estado. “Meu avô sempre dizia que ‘a palavra é sagrada’ e os grileiros usaram muito dessa confiança das pessoas. Não era necessário um papel para provar que onde se vive é seu. Hoje, a gente tem um mecanismo bastante forte que é a questão da legalidade. A gente vai tendo a retirada dos territórios pela lei, por quem está lá fazendo a lei. É feito a olhos vistos. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um desses instrumentos”, pontua. 

Ela relata que quando iniciou o processo de discussão sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) junto ao Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, o que lhes era passado ia no sentido de que o CAR seria uma autodeclaração, apenas para ter um registro de quanto de terras devolutas havia no país. “O CAR inaugura um novo tempo, uma nova grilagem de terras, agora legal. Não vai ser o jagunço que vai chegar e dizer que a terra tem dono, porque o Estado é quem aponta a arma e essa arma é o CAR. É o Estado que aponta dizendo: ‘olha essa terra aqui tem dono, ou ela é do fazendeiro ou ela é da União’. Essa forma é tão violenta, quanto quando havia o jagunço apontando arma para a cabeça das pessoas”.

Para a pantaneira o momento é de ação contra as queimadas, mas também de reflexão sobre a concentração de terras no país para exportação de commodities de exportação. “A questão dos incêndios nos faz refletir sobre a ganância humana de querer cada vez ter mais terras, mas para produzir menos. Nós não usufruímos dessa produção, essa produção não ameniza a miséria do povo. Não ameniza a fome. Ela não ameniza a dor que a gente está passando nesse momento”.  

Em um contexto de tantos ataques, Claudia defende que o caminho é pelo acesso à informação, especialmente quanto aos direitos dos povos: “A nossa ferramenta é a nossa voz, nossa resistência é, também, pelo aspecto legal. Falar da Constituição Federal, sobre a Convenção 169, falar do Decreto 6.040. O nosso instrumento de luta, hoje, também precisa ser por meio desses instrumentos legais”, define.

“O CAR inaugura um novo tempo, uma nova grilagem de terras, agora legal. Não vai ser o jagunço que vai chegar e dizer que a terra tem dono, porque o Estado é quem aponta a arma e essa arma é o CAR.

Claudia de Pinho, da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira
FOTO: original na matéria do Repórter Brasil -
"Fogo no Pantanal mato-grossense começou em fazendas de pecuaristas
que fornecem para gigantes do agronegócio" -
autoria de Christiano Antonucci/Secom-MT