Novas tecnologias e bioeconomia: o que há por trás da inovação?

No segundo webinário, Grupo Carta de Belém descortina o que há por trás das inovações no campo da biodiversidade

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Novas tecnologias e bioeconomia foi o tema do segundo webinário do ciclo de debates organizado pelo grupo Carta de Belém, que discute a recuperação econômica no contexto pós pandemia. 

O debate foi fomentado por três convidados que, de diferentes ângulos, evidenciaram o alinhamento do agronegócio e do mercado financeiro com o discurso da sustentabilidade e da preservação. Os três discutiram termos como bioeconomia, agricultura 4.0 e biotecnologia a partir da experiência brasileira no contexto de desmonte das políticas socioambientais.

Bioeconomia e a usurpação do conhecimento tradicional
O termo bioeconomia tem sido utilizado para designar a utilização inteligente dos recursos naturais. No entanto, o que isso tem significado para os povos e comunidades tradicionais é radicalmente diferente. É o que aponta Lourdes Laureano, da Articulação Pacari Plantas Medicinais. Para ela, a integração entre o mundo dos negócios e a biodiversidade está ancorada em uma relação de valor puramente mercadológica com a natureza. “Tem coisas que para nós tem valor muito além do econômico”, defende.

Segundo ela, no cerrado de Goiás, a bioeconomia tem chegado como uma oportunidade de negócio, através das propostas de cadeias produtivas e de comercialização em larga escala. Com o lançamento do “Programa Bioeconomia Brasil – Sociobiodiversidade” em 2019, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o governo começou a mapear os recursos naturais utilizados pelas comunidades tradicionais e os conhecimentos que estas populações detêm sobre a biodiversidade local. 

Este tipo de ação tem dois efeitos negativos, pontua Lourdes. O primeiro é que a inserção dos produtos manejados tradicionalmente em mercados de larga escala gera uma desestruturação das formas de organização e dos modos de vida das populações. “Tradicionalmente as comunidades coletam o pequi depois que ele cai, depois de maduro. Mas para atender a exigência deste programa, que oferece este recurso de compra imediata, começam a colher o pequi antes da maturação com vara”, conta. 

Uma segunda consequência da atual política ambiental brasileira refere-se à usurpação do conhecimento tradicional sobre a biodiversidade, a partir de uma relação desigual de poderes. O uso tradicional das plantas medicinais é bastante emblemático neste sentido. Por anos este tem sido criminalizado e menosprezados no cuidado da saúde brasileira, mas nas mãos das empresas os conhecimentos sobre os medicamentos naturais tornam-se produtos comercializáveis. 

“O processo de inovação é excludente, não merece a confiança nem dos consumidores e nem das comunidades. A partir da inovação, com base na usurpação do conhecimento tradicional, desenvolve-se produtos que lá no final nós vamos ter uma porcentagem, que não foi definida por nós, que foi definida pela lei, enquanto somos produtores de conhecimento e de inovação”, denuncia Lourdes. 

Soberania e campesinato na era da agricultura 4.0 e das biotecnologias
A chamada “agricultura 4.0” vem propondo conectar em tempo real os dados coletados pelas tecnologias digitais para otimizar a agricultura, mas também outros processos como a mineração. Levando a suposição de que no futuro estas atividades poderão ocorrer praticamente sem trabalho humano em campo. Já existem no Brasil colheitas coordenadas via satélites e está em processo a experiência com mineração não tripulada no norte de Minas Gerais.

Beto Palmeira, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), questiona: haverá possibilidade de humanidade quando isso acontecer? Para ele, essa realidade tecnológica traz desafios para os movimentos de agricultores. É preciso repensar as lutas possíveis num cenário em que o agronegócio acontece sem trabalhadores em terra. Mas também é urgente incorporar a tecnologia para pensar uma nova geração de agricultores, com uma vida mais confortável no campo.

Transgênicos e agrotóxicos: filhos das tecnologias imprecisas
Para Gabriel Fernandes, do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata e integrante do Grupo de Trabalho Biodiversidade da ANA, o aumento do uso de agrotóxicos, tanto em quantidade, quanto em variedade, está diretamente conectado ao uso dos transgênicos. Um exemplo são os coelhos modificados geneticamente para produzir mais carne que apresentaram línguas grandes, porcos com uma vértebra a mais e a morte prematura de bezerros que tiveram a coloração dos pelos alteradas geneticamente, exemplifica. 

Para o pesquisador, há uma atualização do vocabulário da genética agrícola, mas que continua servindo ao projeto do agronegócio e que segue reproduzindo baseada em imprecisões científicas. Atualmente se fala em edição de genes (cisgenia, genes drives, dentre outros) ao invés do melhoramento genético, termo relacionado aos “antigos” organismos geneticamente modificados. 

A inovação do vocabulário da biotecnologia serve para driblar as leis que regulam as pesquisas, experimentos e implantação dos transgênicos. “Qualquer empresa de tecnologia que quiser introduzir no Brasil qualquer produto derivado destas técnicas, não precisa passar por nenhum tipo de pesquisas, estudos prévios… Basta mandar uma carta para essa comissão”. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNbio) recebe essas solicitações das empresas e pode liberar o produto para o mercado brasileiro, baseada na justificativa de que as técnicas de edição de genes não são o mesmo de modificação genética, explica Gabriel. 

“A genética e os genes são uma mercadoria, mas são uma mercadoria não na sua forma natural, na floresta e sim quando são retirados do seu contexto de uso, de reprodução da biodiversidade, quando viram mercadorias sobre o controle das empresas”, critica. 

Próximos debates
Outros dois webinários ocorreram nas semanas seguintes, trazendo para discussão o “Green New Deal” e as “articulações latino-americanas e iniciativas internacionais”. Participam dos encontros organizações que compõem o grupo Carta de Belém e convidados.

Por Lívia Alcântara (jornalista e socióloga)
Com equipe de comunicação Grupo Carta de Belém /
Amigos da Terra Brasil